São Jorge

“São Jorge”

Sustentando o céu.

No ecrã, um plano da nuca de um homem.

Ele caminha em silêncio por entre prédios de um bairro social. Ao longe alguém discute, o escape de uma mota, uma buzina que se distancia.

O plano da nuca mantém-se.

Ombros descaídos, costas curvadas. Os pés caminham sobre gravilha.

Com este plano sente-se o peso que este homem tem de carregar, tal como Atlas castigado sustentou nos ombros o céu.

Com este plano o silêncio é palpável.

Com este plano do realizador Marco Martins eu submergi no filme “São Jorge”.

O pano de fundo é a crise que trouxe, em 2011, a Troika a Portugal. Falências, desemprego e dívidas foram predicados de uma tragédia social que provocou uma das maiores vagas de emigração portuguesa e que encurralou quem não conseguiu nem partir, nem arranjar emprego.

Jorge está desempregado, vive num quarto em casa dos pais com filho Nelson. A mulher, brasileira, decide regressar ao seu país e quer levar o filho de ambos. Sobre os ombros de Jorge caí a responsabilidade de evitar a separação da sua família, por isso aceita um trabalho numa empresa de cobranças difíceis.

Paira durante todo filme um sentimento opressivo, uma ansiedade labiríntica, sublinhado pela opção do realizador de filmar a maioria das cenas à noite.

No centro está o silencioso Jorge, interpretado por Nuno Lopes, que nestes tempos duros resiste, às vezes como pilar, às vezes como peão. O Jorge de Nuno Lopes é um misto de dureza e vulnerabilidade que me roubou o coração.

Uma interpretação assombrosa, confirmada pelo prémio de melhor actor na secção Horizontes do Festival de Veneza 2016.

A rodagem de “São Jorge” foi feita nos bairros da Bela Vista (Setúbal) e da Jamaica (Seixal). As minhas cenas preferidas são as das conversas em casa dos pais do Jorge, quando à volta da mesa da sala actores e moradores desses bairros se confundem, queixando-se sobre as dificuldades que têm em manter uma vida digna em tempos tão difíceis.

Num país que ainda recupera da crise é urgente que este tema seja abordado. A Arte, neste caso o Cinema, traz à luz fracturas, discórdias, mágoas, permitindo que a sociedade as possa compreender e a partir daí construir soluções.

Este é o segundo filme que vejo sobre este tema (o outro foi “As Mil e Uma Noites”, de Miguel Gomes) e acho que ainda há muito para reflectir e debater.

Uma boa nota é que no primeiro fim de semana “São Jorge” foi visto por mais de 10.000 espectadores e até à data já foi visto por mais de 24.000 pessoas.

 

Ilustração de Joana Fernandes.



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