“SELFIE”, com Mateus Solano e Miguel Thiré
Espetáculo em atualização…
Neste espetáculo, mais do que rirmos por causa da incrível interpretação dos atores, rimo-nos de nós próprios. Nos dias de hoje quase toda a gente tem registo em redes sociais e um telemóvel com acesso à internet, câmara e aplicações. E é com base nessa crítica social e nos frequentes updates da tecnologia que se baseia este espetáculo. Já com mais de dois anos de apresentações pelo Brasil e Estados Unidos da América (comunidade brasileira), “Selfie” chega agora a Portugal com referências e adaptações que, assim como a tecnologia, sofre adaptações e atualizações de acordo com o espaço e o tempo.
Para aqueles que acham que vão assistir a um espetáculo com gadgets, smartphones, ipads, projeções… enganem-se. Esta criação foca-se no trabalho dos atores que levam o público numa viagem ao drama em que a vida de Cláudio, interpretado por Mateus Solano, se transforma quando deixa de existir no mundo do www. Miguel Thiré faz tudo o resto. Para quem conhece o trabalho do ator de “Cidade Maravilhosa” percebe que este tem uma certa tendência para se multiplicar em várias personagens. E isto, sem trocas de figurinos e apenas uma ligeira alteração de cenário.
Esta é uma criação, que apesar de ser uma crítica à sociedade dependente do telemóvel, foca-se sobretudo no trabalho físico e muito consistente dos intérpretes, que nos possibilita imaginar cada cena como se tivesse todos os adereços e personagens de diferentes gerações e géneros. O resultado final combina o uso do humor com uma proposta de reflexão sobre a necessidade que sentimos de estar sempre conectados. Mas, para perceber melhor como se deu a criação de “Selfie” e o que é hoje o espectáculo, fomos falar com os actores:
Depois de mais de 2 anos de apresentações e milhares de espectadores, como é que vocês se sentem em trazer o “Selfie” a Portugal?
Mateus Solano: É diferente para cada um de nós. O Miguel veio morar aqui, então vou falar por mim. Para mim é um sonho mesmo. Porque a gente levou para EUA, mas é diferente, é o “show business”. A gente fez para a comunidade dos EUA, é um novo mundo. Para mim é muito afetivo estar aqui em Portugal. Primeiro é muito doido ser famoso em Portugal, em segundo é muito prazeroso, é um sonho. Resumindo, é um sonho.
E nos Estados Unidos tiveram que adaptar a peça para inglês ou foi em português do Brasil?
Miguel Thiré: Foi em português do Brasil porque a gente fez para a comunidade brasileira lá, que é muito grande. A gente fez uma apresentação em cada cidade. E aqui, a gente tá muito curioso. A gente é brasileiro, vamos fazer a peça em brasileiro, mas ao mesmo tempo a gente tentou colocar algumas coisinhas particulares, referência de Portugal. A gente fez um estudo sobre isso, por exemplo, virais portugueses, memes. Ou seja, coisas que aqui a internet teve de particular. Respondendo também um pouco da pergunta anterior, eu estou morando aqui há um ano e meio e desde que eu vim pra cá… (a peça é mais antiga, a peça já existe há 3 anos). Desde que eu vim para cá eu já voltei ao Brasil para fazer o “Selfie” em duas ocasiões e agora a peça tá vindo para cá, nesse mesmo teatro em que eu já trabalhei e então é assim, uma delícia, ‘tou louco para que isso aconteça logo, acho que vai ser muito legal.
A gente tá o tempo todo com a cara enfiada, não tem jeito
E vocês estão a ter dificuldades com as adaptações do texto às nossas expressões?
Miguel: Não, um pouquinho.
Mateus: Eu tinha esse papo. Eu fiquei um ano pedindo para o Miguel mostrar para um amigo português esse texto pra mudar ele inteiro. Até que o Miguel me veio com um argumento muito convincente, de que quando você vai assistir um brasileiro você vai assistir o que brasileiro diz, né? Fica muito artificial a gente ficar tentando trocar porque há muita intimidade com o jeito de falar brasileiro. O que a gente mudou foi mais nesse sentido…
Miguel: referências…
Mateus: falar uma rua que tem trânsito, um lugar onde as pessoas vão viver e depois tem as referências.
E vocês sentem-se influenciados pela híper-conectividade?
Mateus: Somos todos. Se você mora numa cidade e quer participar no mercado e se você quer participar na cidade ativamente, você precisa de ser alguém no mundo virtual.
Miguel: Mesmo, por exemplo, posso falar por mim. Eu não sou um cara ligado em redes sociais. Não é que eu não as tenha, tenho. Mas fico um tempão sem ver. A minha personalidade vai um pouco contra esse costume de alimentar o tempo todo, de estar o tempo todo dizendo alguma coisa ou produzindo foto para aquilo, não combina com isso. E ao mesmo tempo, o telemóvel não sai da minha mão o dia inteiro: whatsapp, grupos, comunicação, aplicações disso e daquilo. A gente tá o tempo todo com a cara enfiada, não tem jeito.
Eu tenho reparado ultimamente que o Mateus tem feito alguns diretos por causa de movimentos de limpeza das praias no Brasil.
Mateus: Ah, sim, sim. Nesse último ano eu falei “vou lutar pela causa ambiental”. Eu tenho o carinho das pessoas, eu preciso fazer alguma coisa com isso. Não só entreter pessoas, mas movimentar. Tem tantos problemas e eu acho que a questão ambiental é a primeira. Porque se não tem água limpa e ar puro para respirar não tem pobres, ricos, direitos e quem acredita nisso e aquilo. Acho que é urgente e as pessoas jogam para debaixo do tapete o tempo todo, a cada segundo está sendo despejado lixo e a uma velocidade cada vez maior, porque a tecnologia exige isso. Então a gente precisa mudar isso exponencialmente. E uma das coisas que eu faço é ir a campo, porque outras das coisas que a gente tem feito é lutar através do celular. E lutar através do celular é muito pouco efetivo para o que a gente quer e muito efetivo para aquele contra o qual estamos lutando, o governo ou o que quer que seja.
O brasileiro ele é assim, ele não tem dinheiro para comprar uma bermuda, mas ele compra um telemóvel mesmo que seja no mercado negro.
E vocês que são figuras públicas, em que é que pensam antes de fazer qualquer tipo de publicação?
Mateus: É uma responsabilidade. Ninguém é natural ou real quando publica. Eu costumo dizer “Oi galera, eu ‘tou aqui” você não sabe que galera é essa, nem é você que tá falando e você nem está aqui, você está fingindo alguma coisa. É tão artificial o negócio. E no nosso caso, a gente tem esse peso, essa voz, essa responsabilidade para dizer alguma coisa. “Como é que eu faço para ser o mais natural possível e ao mesmo tempo passar uma mensagem bacana, que não seja chata?”.
Miguel: E como o que a gente faz na peça é levantar uma reflexão, mas ao mesmo tempo não fechar nada é interessante pensar por outro lado também. De como a internet horizontalizou o que é fama, o que é poder. Hoje em dia um comentário bem feito por uma pessoa num telemóvel pode ser replicado e se tornar um viral, se tornar uma referência para milhares de pessoas pra bem e pra mal. Às vezes saímos crucificando pessoas por pequenas ações. A única vez na vida que um pobre coitado sem querer jogou um pedaço de um lixo numa coisa, se ele é filmado naquele momento ele pode ser crucificado. Ou seja, a representatividade que se tem por ser um ator da media ela migra pra internet. Mas ao mesmo tempo é como se todo o mundo tivesse o mesmo poder de criação de conteúdo.
Mateus: E de opinião e isso que é o mais incrível. Porque há opiniões que valem mais do que menos e com essa horizontalidade um Zé das Couves ali da esquina, ele vai e é agressivo e você do alto da sua “famosidade” se sente atacado por alguém que até ontem você não daria nem voz e todo o mundo tem voz ali. É um assunto muito fértil e daí que surgiu a peça que fala com muito humor de uma questão que é no mínimo assustadora.
Miguel: Mudou o mundo, né? Mudou o mundo de uma maneira concreta, visível e é curioso como mexeu com todas as gerações. Eu dou aulas para crianças de nove anos e todas elas estão ali o dia inteiro e os senhores também, os avós, todo o mundo já enfiou o telemóvel na mão do avô e falou “Vô, tem que ‘tar com whatsapp aí e facebook”. E todas as classes sociais também. Um bilhionário, ele tem um telemóvel que faz as mesmas coisas, um pouquinho melhor só, do que o outro. O brasileiro então, tá muito conectado. O brasileiro ele é assim, ele não tem dinheiro para comprar uma bermuda, mas ele compra um telemóvel mesmo que seja no mercado negro.
E qual é que foi a vossa primeira reação a este texto?
Miguel: Na verdade não é assim. Houve uma criação nossa, uma criação em conjunto, a gente teve vontade de trabalhar junto. O nosso produtor falou “Vamos fazer uma peça juntos, vocês dois, de novo e tal” e a gente foi começar o processo. Entrou o Marcos Caruso para dirigir, nós convidamos, e a Daniela Ocampo que é da nossa geração, do Tablado. Aí a gente sentou e só tinha o título. Faltavam doze semanas para estrear e só tínhamos o título “Selfie”. O Caruso que é louco aceitou, só tinha o título mas “vamos lá”. Então a gente sentou e pensou a peça juntos, a ideia, a estrutura geral, passamos alguns dias conversando, depois improvisou um bocado em cima das ideias que a gente já tinha tido. E com esses improvisos a Daniela levou pra casa, foi trazendo, a gente foi comentando. Então é assim: o texto nasce também da gente. Foi uma coisa que ela criou em cima de elementos que a gente deu pra ela.
Foi mais ou menos de quanto essa “residência artística”?
Miguel: Três meses e pouco. A gente tinha o título e depois pensou “como é que a gente vais falar disso, do que é que a gente vai falar?”. Primeiro vai falar só de super-exposição? É muito comum as pessoas acharem que vão ver uma peça sobre a nossa super-exposição na internet. Ela é também sobre isso, mas ela é sobre a nossa híper-conectividade diária, sobre esse vício na internet de bolso.
Mateus: Três meses e meio para estrear o que na verdade foi absolutamente diferente. Nem tanto, a história é a mesma. Mas muito diferente do espetáculo a que portugueses estão assistindo que, por ser nosso a gente está o tempo todo mexendo, atualizando…
Miguel: Atualizando questões tecnológicas que mudaram, já tem uma aplicação que tá velha e outra que tá nova…
Mateus: E é a partir da resposta do público. É o facto de termos autores vivos que a gente ‘tá sempre mudando.
Miguel: Por exemplo, a peça estreou era o Instagram com muita força, na sequência já era o Snapchat, daqui o Snapchat já perdeu, já é o Instastory que manda. As coisas vão mudando e a peça vai-se adaptando.
O teatro tem uma coisa que não há no telemóvel, que é a imaginação do público que assiste, que é a experiência teatral ali na hora
A própria peça é atualizada assim como a tecnologia?
Ambos: Sim!
Mateus: Exatamente. O Miguel, principalmente, achava que esta peça ia durar um, dois anos. Que em algum momento o poder ia sair do celular e ia para outra parte. Ou ia para o corpo da gente ou para outro lado parecido. E na verdade, se multiplica o que se pode fazer dentro do celular.
Miguel: Ainda não deixou de existir o celular. E enquanto existir o celular, o telemóvel a gente tem a peça.
Numa peça que fala tanto do poder da tecnologia vocês não usam quase ou nenhuma tecnologia, a não ser a sonoplastia e luz. Como é que vocês acham que trabalham aqui a questão do teatro físico, que estudaram no grupo Tablado, certo?
Mateus: Sim, é verdade. Nós dois fizemos aulas no Tablado que é uma escola de improvisação muito famosa e muito querida lá no Rio de Janeiro. Mas a gente vem desse trabalho físico, que a gente curte fazer, já de outros dois trabalhos anteriores a “Selfie”. Agora, isso na verdade foi o Caruso que, genialmente, quando a gente começou a pensar “vamos falar de tecnologia, vamos montar um telão de ledes ali atrás, vamos fazer com que o público participe, possa mandar mensagens e a gente reedite de acordo com aquelas mensagens?”. E o Caruso falou não, “não vamos competir com isso daqui, com o telemóvel, porque vamos sair perdendo”. O teatro tem uma coisa que não há no telemóvel, que é a imaginação do público que assiste, que é a experiência teatral ali na hora.
Miguel: Aí a gente começou a entrar com o nosso trabalho, que a gente já fazia antes e começou a propor pra ele. Então a gente pode ir por esse caminho, da mímica do teatro físico e tal. Um trabalho que já fazíamos antes e já tínhamos estudado e aí a coisa foi-se dando, foi acontecendo. A gente fala de tecnologia da maneira mais artesanal, da maneira que só o teatro pode falar.
Mateus: Mas não foi no grupo Tablado que a gente aprendeu o teatro físico não. O Miguel esteve numa escola de teatro físico, inclusive na Inglaterra e é meu professor.
A gente fala de tecnologia da maneira mais artesanal, da maneira que só o teatro pode falar.
Pois é, porque o Miguel adora multiplicar-se em personagens…
Miguel: É, tenho dois trabalhos, “Selfie” e “Cidade Maravilhosa” juntos dão 14, 15 personagens. Aqui são 10 só dentro da composição física e vocal ou seja, sem troca de figurino, sem adereço, só de imaginação e corpo.
E vocês, no vosso quotidiano, já se reviram em alguma das cenas que aqui representam?
Ambos: O tempo todo.
Mateus: É, algumas. Porque são comentários de como a vida real está passando e a gente está assistindo ela através do celular e isso acontece o tempo todo.
Miguel: A toda a hora. E personagens que são visíveis em vários lugares. Eu lembro de uma cena que a gente inventou, uma piada excessivamente escatológica, que é uma moça que vai tirando fotos a tudo e aí tira foto no… uma piada que faz muito sucesso. Uma passagenzinha rápida, mas a moça vai tirando tanta foto, até de partes íntimas e a mais ou menos um mês de espetáculo algum de nós mandou essa foto. Alguém na praia a fazer exatamente isso, a tirar uma foto com a perna aberta e a gente “Meus deus, cê acha que ultrapassou a realidade?” Não, senhor. A realidade está ali, as pessoas estão fazendo isso, é impressionante!
Mateus: É impressionante, ‘tá difícil competir com a realidade.
E o que é que vocês esperam do público português?
Mateus: Eu não espero nada. Eu não faço ideia.
Miguel: Eu também não faço ideia, mas eu acho que vai funcionar que é uma beleza! Eu espero.
Mateus: Você já esteve em cena, eu não. Agora eu messo se o espetáculo vai funcionar ou não pela relação que eu vejo nas ruas das pessoas com o celular. Numa cidade como Lisboa, eu vejo pessoas com um celular que de repente vão na rua, têm um poste, desviam e continuam andando no celular. Assim, acho que essa peça não tem como não fazer sucesso.
Miguel: É mundial, é um fenómeno mundial. Eu que fiz o “Cidade Maravilhosa”, uma peça sobre o Rio de Janeiro, sobre a “carioquice” e foi um sucesso, o português gostou muito de assistir, teve um retorno tão bom, então o “Selfie” ele é sobre o que o lisboeta ou o portuense estão acostumados a viver no dia-a-dia, vão todos se reconhecer conectados ou não. Quem não é conectado se identifica um tanto quanto porque tem uns personagens que dizem “Meus deus, para com isso!”. Então, é uma coisa que mexeu com o mundo inteiro. Mesmo se você não for conectado, você vai-se identificar o tempo todo com a peça porque é impossível, alguém que não viva com telemóveis em volta.
Mateus: E por isso mesmo, por ser uma coisa recente e forte, é importante dizer que a peça não aponta um culpado, não faz uma crítica. Ela levanta mesmo uma reflexão divertida sobre o que a gente ‘tá vivendo.
Definitivamente um espectáculo a não perder. Até 18 de Março em Lisboa, no Teatro Tivoli BBVA e de 22 a 25 de Março no Porto, no Teatro Sá da Bandeira.
Ficha Técnica
Interpretação: Mateus Solano e Miguel Thiré
Encenação: Marcos Caruso
Texto: Daniela Ocampo
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