Sergei Loznitsa
A Zero em Comportamento organizou uma retrospectiva integral da obra de Sergei Loznitsa, figura activa no documentário Russo que agora inicia a sua caminhada pela ficção com “My Joy” (“A Minha Alegria”). A RDB aproveitou a oportunidade para conversar com o realizador e fazer uma antologia da sua vasta obra.
Loznitsa não se rege pelos moldes conservadores do documentário, optando por retratar situações e pessoas de forma pouco convencional e sem o habitual comentário em voz-off, preferindo assim que cada espectador formule a sua opinião. Realizou dois documentários com imagens de arquivo, os muito falados e premiados “Blockade” e “Revue”. É uma surpresa observar a sua primeira incursão pela ficção, com “A Minha Alegria”, onde o estilo realista é estilizado e supreendentemente feroz, perfeito na manipulação das situações usando cinematografia exemplar. Oportunidade para fazer uma retrospectiva da sua obra a partir das pistas deixadas pelo próprio realizador em discurso (quase) directo.
Uma Escola Muito Velha
Sergei Loznitsa nasce em 1964 na Bielorrúsia, na altura parte da União Soviética. Os seus estudos não são inicialmente sobre o Cinema, mas antes em Matemáticas e Sistemas de Controlo, nomeadamente Inteligência Artificial e Cibernética. Em 1991 decide ingressar na prestigiada Gerasimov Institute of Cinematography, na Rússia, a mais antiga escola de cinema do mundo. Uma mudança tão radical merece uma primeira pergunta, porquê mudar de rumo? Loznitsa responde: “Porque, provavelmente, a minha profissão anterior não era suficiente para mim e queria experimentar algo novo.” O Realizador relata que na altura não estava certo do rumo a seguir mas confiou no seu instinto, e, após realizar o seu terceiro filme, dez anos depois de ter ingressado na escola, descobriu que o cinema era a sua verdadeira profissão.
Entrar numa escola tão rígida e com um processo de selecção muito restrito, onde mestres como Tarkovsky ou Eisenstein também estudaram, deve ter sido uma experiência muito especial, embora Loznitsa refira que é difícil explicar: “Acho que poderia escrever um livro inteiro sobre esta experiência!”, diz-nos, “Mas posso dar uma resposta muito simples: foi, definitivamente, uma experiência muito útil.” Aprofundando mais o assunto, Loznitsa diz-nos que a Gerasismov Film School “é, de facto, uma escola muito antiga, com as suas tradições e com professores igualmente antigos, alguns deles deram aulas a Tarkovsky, na geração de 50-60.” Loznitsa finaliza com um sorriso: “Sentir-me-ia muito embaraçado se fizesse maus filmes depois desta experiência.”
Mas não se nota em Loznitsa uma falta de modéstia ou uma posição de privilégio quando fala sobre esta escola, antes um profundo respeito. E isto nota-se em A Minha Alegria, por exemplo, onde a aprimorada técnica é uma regra directa do ensinamento rígido da escola Russa, que o realizador consegue derrubar sem dificuldades. Há pormenores no filme que são muito próprios, uma linguagem só sua.
As Imagens de Arquivo e o Filme Mais Gentil
O primeiro filme de Loznitsa é “Today We’re Going to Build a House”, uma curta que documenta um dia de um grupo de construtores, filme premiado internacionalmente. Aqui nota-se uma arrojada interpretação do trabalho de equipa, à superfície nada parece estar a acontecer, é no subsolo que a casa se constrói. Em “Life, Autumn”, Loznitsa ruma ao interior da Rússia, local onde vai permanecer em muitos dos seus filmes, como em “Settlement”, mas aqui o meio rural é uma opção. Nesse filme em particular, o realizador filma uma comunidade para pessoas com deficiência mental, e a paisagem do campo transmite a serenidade necessária. “Portrait” é, simplesmente, um conjunto de retratos, filmados, de pessoas do campo junto aos seus afazeres, uma bela e simples alegoria da vida de pessoas no interior rual.
Dois dos seus filmes mais vistos e apreciados são feitos com imagens de arquivo. “Blockade” retrata o cerco de Leningrado durante a Segunda Guerra, onde as forças Alemãs invasoras cercaram a cidade durante vários dias. A tensão foi filmada na altura e Loznitsa reconstroi a estória do Cerco, recriando todos os efeitos sonoros em estúdio, um trabalho monumental que é exibido todos os anos nas comemorações da data histórica do fim do cerco, ou seja, a 27 de Janeiro, em São Petersburgo.
“Revue” é construído com imagens de propaganda do regime soviético, intercaladas com cenas da vida quotidiana dos anos 50 e 60, montadas de forma quase sarcástica. “O meu objectivo foi mudar o significado do material de propaganda e utilizá-lo contra si próprio. Estes filmes foram usados durante anos como forma de lavagem cerebral e pensei que seria uma boa ideia utilizar esse material para uma boa causa.”
Loznitsa diz-nos que estes dois últimos filmes foram muito bem recebidos na Rússia, especialmente “Blockade”, e como nota curiosa revela-nos que “Revue” recebeu um prémio para o “Filme Mais Gentil” de um festival patrocinado pela Igreja ortodoxa, tendo sido encarado como uma nostálgica reminiscência dos tempos Soviéticos. Diferentes pontos de vista? Loznitsa parece divertir-se com estes diferentes níveis de percepção.
Onde Está a Minha Alegria?
O seu último filme, “A Minha Alegria” não é própriamente um polémico filme, mas antes um filme polémico. Dividiu a crítica, embora não tenha sido exibido internacionalmente no circuito comercial. Trata-se de uma espécie de road movie que é mais uma viagem ao interior, tanto físico como metafísico, de difícil digestão, e com uma violência que, por ser demasiado real, revolta-nos constantemente. Não é um documentário, mas esta obra de ficção é filmada como um documentário estilizado, devido à utilização de alguns actores não-reais, múltiplos planos-sequência e algumas contemplações históricas.
Porque é que não é um documentário? “Simplesmente porque não consigo imaginar-me a realizar esta estória como um documentário”, é pronto na sua resposta. Cita-nos Andrzej Wajda: “Quando um realizador cria o seu filme deve pedir a benção de Deus duas vezes, a primeira vez quando escolhe um assunto e a segunda vez quando escolhe o seu actor principal.” O seu sorriso é serio: “Claro que isto é uma piada, mas o facto é que durante dois anos eu vivi esta estória: ela tem que ser importante o suficiente para dedicar-lhe todos esses anos da minha vida. O que é que significa ser importante? Significa, basicamente, que a partir do momento em que estás a lidar com a estória começas uma viagem de conhecimento interior, e enquanto desenvolves a estória também desenvolves algo dentro de ti, portanto estás a procurar-te. Tem que haver algo nesta estória que te preocupe e disturbe o suficiente.” Loznitsa remata a sua observação: “Não estou interessado em fazer um filme apenas para avançar a minha carreira.”
Esta forma de procura interior pode ser tão pessoal que não se sinta em “A Minha Alegria”, mas é intensa, com certeza, ao ponto de o filme transpirar uma urgência feroz. Mas é normal que se pergunte se estas situações que Loznitsa filma não serão reais? Esta realidade está a acontecer? “Tudo o que vemos no filme acontece dentro do filme, e tudo o que acontece na vida real não aconteceu no filme.” Mais preciso que isto não poderia ser, mas o realizador sorri e descreve um episódio que se passou com um dos actores não-profissionais que utilizou no filme, após este ter visto uma versão final da obra: “Ainda bem que isto são só contos de fadas, porque na vida real as cosias são muito mais terríveis. A vida é muito mais difícil.” Pode resumir muita da carga pessimista que o filme contém, especialmente porque Loznitsa revela-nos que muitos episódios foram moldados por acontecimentos reais, que adaptou e transformou porque “o filme tem a sua lógica e a narrativa do filme tem a uma lógica muito própria.”
Será apropriado perguntar onde está a Alegria em “A Minha Alegria”? “Tem que estar presente?” Insistimos na pergunta com o olhar, e Loznitsa finaliza: “No título.”
Mas continua a sua resposta, sempre seguro e insistente em não dar pistas que possam atrapalhar a verdadeira percepção do filme: “Podemos definir algo utilizando dois métodos diferentes. O primeiro será atribuir um nome que corresponde à sua verdadeira essência, o outro método será atribuir um nome que não tem nada a ver com a essência do assunto, por isso usei este segundo método. De um ponto de vista abstracto, ambos os métodos são absolutamente apropriados.”
Experimentar com o documentário
Neste momento, Loznitsa encontra-se a finalizar um documentário, e no Outono irá começar a rodagem da sua próxima ficção. Não tem predilecção, quer continuar a realizar tanto documentários como ficção, mas “os documentários dão-me uma possibilidade de experimentar, porque não tenho a capacidade financeira de experimentar numa escala maior nas longas-metragens de ficção, por isso pratico no documentário utilizando novas formas, inventando estruturas diferentes.”
Esta incessante procura pelo retrato do interior Russo é uma obsessão e não uma apropriação, uma obsessão que conhece de cor. Loznitsa prefere que o espectador interprete os seus filmes à sua maneira, afinal é assim que todos os filmes devem ser observados, sem pistas que possam atrapalhar a nossa percepção, e “A Minha Alegria” é o filme onde essa percepção é mais urgente, porque o realismo desta narrativa é propositadamente complexo; é uma violenta beleza que Loznitsa filma com alguns artifícios próprios como a utilização de duas acções em simultâneo sem se focar em nenhuma delas em particular. Se os seus documentários são perfeccionistas e muito cuidados, “A Minha Alegria” é uma violenta pedrada no charco, é complexo e perfeccionista mas ainda mais real que os seus documentários. Como isto pode acontecer? Com uma súbtil genialidade e um olhar muito apurado e experimentado. Os documentários permitem ao realizador experimentar para tomar o mundo de assalto com a ficção, e é em “A Minha Alegria” que Loznitsa mostra a sua garra. É é um filme cínico que não se preocupa com o espectador nem com diferentes níveis de emoção. Tarkovsky dizia que o cinema não é entertenimento. “A Minha Alegria” é mais real que o documentário, e não poderia nunca ser um documentário.
“A Minha Alegria” não é, certamente, uma pedrada no charco, mais uma pedra no ar, à espera de cair, tal como todos os filmes de Sergei Loznitsa que aguardam os espectadores. Esperamos que após esta retrospectiva os seus filmes continuem a estrear nas nossas salas, pois a sua obra é cada vez mais urgente, intemporal. Uma urgência contida, mas sem limites: os paradoxos que parecem divertir Loznitsa são também as pistas para enfrentar a sua magnífica obra.
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