Sérgio Godinho, JP Simões e Couple Coffee no Musicbox
A Liberdade aqui e agora.
16 de Abril de 2009. A caixa de música mais famosa do Cais do Sodré conteve, na primeira de uma série de três noites, três dos expoentes actuais mais significativos da música comprometida com os ideais de Abril: JP Simões, os brasileiros Couple Coffee e o veterano Sérgio Godinho. O ciclo Lisboa, Capital, República, Popular testemunhou, com todo o entusiasmo, que a Revolução não está geográfica nem cronologicamente ancorada.
A prova de que as latitudes pouco importam – e menos ainda distanciam – os ideais de Abril, começou com os Couple Coffee, duo radicado em Lisboa, que propõe, através da voz de Luanda Cozetti e do baixo de Norton Daiello, a reinvenção dos clássicos da Bossa Nova (reunidos no álbum “Young and Lovely – 50 Anos de Bossa Nova”, de 2008) e do repertório de Zeca Afonso (“Co’as Tamanquinhas do Zeca”, 2007) através dum filtro muito solarengo e tropical.
Luanda, de sorriso franco e comunicação fluída com o público, acompanhada da cadência contagiante do baixo, abriu calorosamente o palco, com uma versão de «Filosofia», de Noel Rosa, e as duas primeiras canções da memória mais convocada do serão, a de Afonso, com «Tenho um primo convexo» e «Menino d’oiro».
Se a cumplicidade entre Cozetti e Daiello é visível e feita de ritmos partilhados, não lhe é em nada inferior a que se pôde verificar que existe entre a vocalista dos Couple Coffee e JP Simões. O ex-Belle Chase Hotel, confesso admirador do cancioneiro do outro lado do Atlântico, acompanhou no primeiro dos duetos da noite, «É feio» (um original de Mário Proença e Marco Aurélio), com um contraste harmonioso entre a presença vibrante de Luanda e o timbre grave e profundo do compositor de Coimbra.
A transição entre protagonistas significou igualmente uma transição de registo, sublinhada pelo recente lançamento do álbum “Boato”. A par do legado brasileiro, ressurge no novo disco a vertente mais teatral – senão mesmo vaudevillesca – da canção popular, pela qual JP Simões tem mostrado um interesse constante ao longo da sua carreira, com especial destaque para momentos como a composição d’A Ópera do Falhado (inspirada n’A Ópera do Malandro de Chico Buarque) e de “Exílio” do Quinteto Tati.
Com toda a pertinência, é precisamente um parceiro desses tempos que chama ao palco, Sérgio Costa, para o acompanhar ao piano em duas das canções do novo álbum: «Tango do Antigamente» e «Poder». O outro acompanhante foi nada menos que um copo de vinho tinto, atributo que reforçou simbolicamente a persona burlesca que Simões encarna de forma convincente, revestindo-a de doses iguais de charme e sarcasmo.
Exibindo menos teatralidade, mas não menos vigência, surge Sérgio Godinho, que parece ter bebido do «Elixir da Eterna Juventude» que a sua voz canta, e a quem basta apenas uma guitarra para agitar os ânimos e as consciências. A mensagem contida em «Democracia», tão actual nos tempos seminais da Revolução como neste início de século XXI, é disso a prova contundente e acolhida com entusiasmo pelo público.
E se há palavras que nem o tempo silenciou, outras há que ganham nova vida através de vozes alheias, como ficou claro no dueto de Godinho com os Couple Coffee da emblemática «Vampiros», nas interpretações, em sotaque meridional, de «Teresa Torga» e da «Balada do Outono» ou na revisitação de «Tanto Mar», de Chico Buarque.
De novo chamado ao palco, JP Simões mostra, mais uma vez, a sua peculiar visão dos tempos que se seguiram às conquistas da década de Setenta, onde tanto espaço há para o júbilo que uns Couple Coffee conseguem manifestar, como também para algum desencanto («1970») e para não menos hedonismo («Uma Para o Caminho» e «La Toilette des Étoillles»). Um quadro feito de muitas nuances, que continua a agradar, pela sua verosimilhança, a um público de idades e vivências diversas.
Sem esquecer que o pano de fundo para as mudanças políticas e sociais é a capital, Sérgio Godinho homenageia-a, novamente a solo, em «Lisboa que amanhece», num alinhamento que incluiria igualmente a força interventiva de «Liberdade» (com o refrão poderoso recitado em uníssono) e o folclore com ecos irónicos de «Quatro Quadras Soltas».
Os encores – primeiro reunindo todos os intérpretes numa versão de «Charlatão», escrita por Godinho e José Mário Branco e depois em três actuações separadas – viriam dar consistência ao conceito do ciclo e fechar o palco deixando uma marca imperecível. Tanto na nova abordagem dos Couple Coffee de «Menino do Bairro Negro» como na actual «Canção Impopular» de JP Simões ou na já clássica «A Noite Passada» de Sérgio Godinho há um denominador comum: a revitalização de uma herança de 35 anos à luz da liberdade de expressão democrática. Sem ela, nunca teria sido possível uma celebração da dimensão da que se viu nesta noite de Abril de 2009.
E é com consciência do seu valor, como uma das mais importantes conquistas da História recente, que o público se despediu, com agrado, desta primeira noite de celebração no Cais do Sodré.
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