Short-Stories @ RDB #5

Uma noite Feliz.

De repente tinha deixado de se importar com tudo aquilo que o chateava: mulheres, dinheiro, respeito dos outros. Saiu a correr de casa deixando a aparelhagem ligada e a pizza no forno aceso. Apanhou o autocarro, depois de estar 25 minutos à espera, e só saiu na última paragem. Estava onde desejava.

Queria saber onde estavam aqueles miúdos que o tinham assaltado da outra vez….
Eram três da manhã quando encontrou os rapazes; estavam a fumar haxixe e encontravam-se de costas para ele. Sacou da arma e gritou:
– Ó filhos da puta, querem-se meter comigo agora?
Assustados, viraram-se, olharam para ele, para a arma e chegaram-se para trás.
– Tem calma, bacano! Não vale a pena fazeres essa merda! – Disse o mais velho que devia ter cerca de 18 anos – Vamos falar, meu, nós damos-te o dinheiro que roubámos.
– Vamos conversar?! Vocês ‘tão é todos fodidos… Até esse puto que ‘tá aí a chorar. Vou enchê-los todos de chumbo. – Ao vê-los começar a recuar contra a parede ganhou confiança. – Tu aí vem aqui ter comigo!
– Eu? – Perguntou um dos rapazes que começou a tentar arranjar uma maneira de fugir.
– Sim tu! Anda cá! – O rapaz hesitou. – Anda cá ou o teu amigo leva um balázio nos cornos!
Zé olhou em volta e percebeu que Rui apontava para o seu irmão, avançou:
– Não vale a pena matares ninguém, bacano. Nós damos-te tudo o que temos aqui… gamámos um telemóvel, e uns 50 euros; até te damos o chito…
Quando ele estava ao seu alcance, Rui agarrou-lhe o pescoço, virou-o para os outros e apontou-lhe a arma à cabeça:
– Primeiro quero os vossos chinos, todos! E é se não querem que eu lhe estoire os miolos. Tu que ‘tás para aí a chorar, recolhe as facas e deita-as na sarjeta que ‘tá aí ao pé de ti. – O garoto, que não devia ter mais de treze anos, fez o que ele lhe mandou e foi ter com os outros. Começaram todos a ficar cada vez mais nervosos, enquanto os olhos do Rui ganharam confiança e malícia. Depois de ter atirado com o rapaz que agarrava para junto dos outros, mandou-os encostar à parede. A sua excitação começava a crescer enquanto via a vulnerabilidade estampada na cara branca das crianças.
– Agora vão-se todos despir! E rápido!

– Mas o que é que lhe passou p’la cabeça, Sofia?
– Não faço a mínima ideia, sinceramente. Não me parece que tenha sido propositado, mas ao mesmo tempo… Mas não consigo imaginar alguém que faça isto em plena consciência. O problema é que ele era um tipo totalmente normal, nem tocava numa gota de álcool. – Vislumbrou o copo cheio de vinho carrascão à frente do seu amigo.
– Como é que ele se chamava? Rui, não é?
– Sim. Vivia sozinho, lá para os lados do Príncipe Real. Trabalhava na bolsa. Ao que dizem era um indivíduo com uma cabeça fenomenal para os negócios.
– Estilo Pedro Caldeira, só que em versão “honesto”.
– Exactamente, Tó! – ela deu uma gargalhada que procurou disfarçar com o guardanapo -Agora a sério, parece que ele era corretor na bolsa de Nova Iorque e tudo. Podre de rico, ao que deu para perceber.
O agente Carvalho observava o seu caldo verde, enquanto falava com a inspectora Sofia, sua amiga de infância. Estavam os dois a jantar no restaurante ao lado da esquadra da polícia. O dia tinha sido bastante cansativo: o agente Carvalho, mais conhecido por Tó, estava a fazer a sua ronda matutina quando deparou com um corpo ensanguentado estendido no passeio. Eram cerca de oito e um quarto da manhã quando a PJ lá chegou, representada por Sofia. A inspectora não conseguia esquecer a imagem do corpo desfeito de Rui e de, junto a ele, uma pistola de água vazia.
– E p’ra que é que eram tantos livros? – questionou Tó, enquanto brincava com uma rodela de chouriço. – Nunca vi ninguém com tantos “calhamaços” em casa!
– Concordo. Apesar de ele ter uma vida muito recatada: sem namorada, amigos com quem saísse; não é normal que uma pessoa leia tanto, ainda mais um corretor de bolsa. Além do mais, todos os livros são da Biblioteca Nacional: a vizinha disse-nos que ele saía e voltava todos os dias com uma braçada deles…possivelmente nem dormia.– o prazer que Sofia evidenciava a comer o pão com manteiga contrastava com o ar de insatisfação por não conseguir ver um fim lógico neste caso de homicídio.

Ao olhar para os registos de aluguer da Biblioteca Nacional Sofia ficou estupefacta. Tinha decidido lá ir depois de uma semana de investigações frustradas e, de repente, tudo ficou explicado. Não havia livro, manuscrito, ensaio, revista ou banda desenhada que Rui não tivesse lido ou, pelo menos, levado para casa. Pela primeira vez na sua vida viu alguém morrer feliz. E não só: viu alguém suicidar-se feliz, pois escolheu a forma, e o momento, de como essa morte iria acontecer.

De repente Sofia sentiu-se a pessoa mais inteligente do mundo. Os registos da biblioteca diziam tudo: um rapaz desenvolveu uma obsessão quando a mãe lhe dissera que ele tinha lido toda a secção infantil e o homem em que Rui se tornara continuou a alimentar essa aposta pessoal. Com 31 anos conseguiu, finalmente, cumprir esse objectivo, não tendo mais nada que lhe desse razão de viver. Para além disso inventou a morte que ele achara perfeita: um “suicídio” com a ajuda de terceiros para que não lhe faltassem as forças no momento decisivo e não passasse a vergonha de desistir de tudo. Foi um herói para o mundo que o rodeava. Mas, para Sofia, ele apenas quis experimentar uma morte auto-infligida lenta e dolorosa, e afinal de contas, o que é que lhe faltava experimentar senão o sofrimento extremo?



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