Soledad Vélez|”Nuevas Épocas”
Para quem acompanha o percurso da cantora de origem chilena Soledad Vélez, o seu novo álbum tanto podia como podia não ser o lógico passo seguinte, apesar de o seu anterior trabalho já ter adentrado por aventuras electrónicas.
Dona de uma voz densa, profunda e quase sem fim, começou por pintar belas paisagens de folk e americana belíssimas, cantando sempre em inglês, acompanhada muitas vezes apenas de guitarra acústica, traçando aquela que podia ser tomada como uma estável carreira de mágoas, penas e tristezas expurgadas no crepúsculo. Com “Nuevas Épocas”, Soledad Vélez mudou as regras do seu jogo novamente e desta vez com toda a clareza, depois de ter apenas ensaiado as sonoridades mais electrónicas em “Dance and Hunt”.
Na verdade, a única regra que a cantora mantém como de ouro é que a música faz parte integral da sua vida, pelo menos até ver. Foi por ela que interrompeu os estudos em Arquitectura e mais tarde rumou a Espanha, onde passou a viver e a partir de onde tem feito carreira, passando por Portugal em 2013 e 2017 em concertos integrados numa mini-digressão pelos dois países ibéricos. A verdade é que a Soledad Vélez de “Nuevas Épocas” é uma nova cantora, é outra pessoa, percorreu o seu caminho e concretizou mudanças, independentemente das razões que tenha para tal. O seu 4º álbum é um trabalho de afirmação ao mesmo tempo individual e de crescimento como profissional de música mas também de abertura a um outro mundo em que pode agora incluir colaborações – teve, aliás, ainda tempo para gravar uma faixa em conjunto com a banda das Astúrias Alberto & Garcia, talvez sintomaticamente chamada de “Reina de la Selva”. É também um álbum de primeiras vezes, já que é a primeira vez que canta integralmente em castelhano, a primeira vez que todas as faixas são assumidamente de sonoridade electrónica e a primeira vez que a produção não está entregue apenas à cantora, já que colabora com Guille Mostaza nesse aspecto.
Se, por um lado, a intensidade da voz de Soledad se perde por entre a sonoridade electro e synth pop estilo revencha anos 80 de “Nuevas Épocas”, já não despida e amparada apenas pela guitarra e outros parcos instrumentos, por outro lado nasceu uma nova cantora, que se se começar a ouvir só agora não se adivinha o percurso feito até agora. Como o próprio título anuncia, são novas épocas que, curiosamente, vão buscar inspiração ao passado recente da música, retomando até uma estética um pouco kitsch pirosa mas assumida, até mesmo na capa do disco. Aí, a estética é enganadora, não se atém ao aspecto, é simbólica, a pantera negra não é só o assumir dessa estética (podia ser um cãozinho de louça, porque não?) mas é também a assumpção da figura totémica da pantera, como explica a cantora em entrevista, em que o encontro com esta figura mística não é um acaso e representa um destino inevitável em que predador e presa se reflectem um no outro de boa vontade. É como se em “Nuevas Épocas” Soledad Vélez declarasse que apesar das aparências continua a incorporar o obscuro animal selvagem que assusta quando arranca aquela voz impressionante da garganta, está agora apenas um pouco domesticado. Essa domesticação é aceitável, assim como as mudanças que a cantora levou a cabo, dentro do espírito da liberdade criativa mas é certo que o novo álbum soa a um encontro estranho em que duas pessoas não sabem de devem apertar a mão ou abraçar-se e acabam por quase beijar-se na boca quando se queriam apenas beijar na cara. Esse sentimento de desconforto nunca passa por completo apesar de o álbum ser bastante consistente e coerente em termos formais ou mesmo de conteúdo e de a produção ser irrepreensível.
Para quem desmaiava ao ter de falar em público quando era mais nova, os temas deste álbum são deveras expansivos e falam de acontecimentos muito próximos das pessoas e até mesmo mundanos, para aquilo que seria de esperar de Soledad Vélez. Os sonhos e a viagem até à terra natal foram bons conselheiros e a cantora fala-nos agora de festas pela noite dentro, de ser jovem, de relações de proximidade, de paixões, liberta e solta. É uma lufada de ar fresco na carreira da cantora e nos ouvidos tanto de quem a ouve pela primeira vez como para quem a acompanha desde os primeiros álbuns. Se, por um lado, mantém a profundidade vocal e de significado, liberta-se também para outros caminhos, perdendo um pouco daquela imobilidade em que facilmente se poderia quedar e em que parecia que iria permanecer, espécie de imagem de marca, segura e confortável. Tudo isso foi deitado pela janela e inclui até um muito belo dueto com El Último Vecino em «Cromo y Platino», a fazer lembrar um pouco a pop exótica de El Guincho circa 2010.
No seu todo, “Nuevas Épocas” é um estrela brilhante em todos os aspectos mas que se estranha antes de se entranhar, sobretudo quando rebenta em faixas disco pop como «Ven para Acá» ou mesmo de «Flecha». Se temas com estas características podem causar estranheza, nas últimas três músicas a simbiose entre a intensidade magnética de Soledad Vélez e a sonoridade mais leve e desprendida é total e retorna em todo o seu esplendor a nova cantora, com a necessária e admitida incongruência que esta frase contém. É em faixas como «El Poder», «Cuando Me Dices Que No» e «Compañera» que se juntam aos sintetizadores uma maior complexidade sonora e corpo, dando também maior destaque à carismática voz de Soledad, que ao longo do álbum se encontra um pouco à sombra da instrumentação. «Compañera» fecha, aliás, “Nuevas Épocas” com chave de ouro, fundindo o gosto folk da cantora com a imagética sonora do Chile e com os caminhos sonoros da pop sintética dos anos 80, numa intensa declaração de força e identidade, fazendo referência à liberdade sem medos na subida às montanhas e à capacidade de pensamento próprio sem limitações. Se na maior parte do álbum as letras são relativamente soltas e leves, é sobretudo naqueles três temas referenciados que é feita a grande tomada de posição e, sobretudo, é cunhada a identidade desta nova época de Soledad, simultaneamente frágil e sólida mas tão magnética e intensa como antes.
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