Revisitar Lou Reed #2
"Songs for Drella" | Lou Reed e John Cale
Como tantas outras coisas, devo o Lou Reed ao João Lisboa e àquele livrinho dele, um dicionário se bem me lembro, sobre os The Velvet Underground e o Andy Warhol, que li antes de ter ouvido qualquer canção da banda. Ou talvez já tivesse o “White Light/White Heat”, que obviamente me deixou estupefacto e meio abananado (trocadilho não intencional). A partir daí até os Velvet se tornarem a banda favorita foi um passinho (atrás, que me valeu um desconto no “The Velvet Underground & Nico” na Feira da Ladra, porque o vendedor pensou que eu desistia da compra por causa do preço, quando ia apenas tirar a carteira do bolso). Terá sido pouco depois que comprei o “Set the Twilight Reeling”, o álbum em que Lou Reed afirmava a vontade de agarrar a décima quarta oportunidade de refazer a vida (um tema querido a que qualquer miúdo de 16 anos), e fui ao concerto do John Cale no Centro Cultural de Belém.
Conto os primeiros encontros, mas outros houve que aprofundaram o amor que se desenvolveu repentina e permanentemente. Não só por Lou Reed e os Velvet e as zangas entre Reed e Cale (o irmão galês) e as zangas entre Reed e Nico (a estátua loura que lhe gelou o coração) e as zangas entre Reed e Warhol e o encontro entre Reed e Sterling Morrison (o primeiro Velvet a sair daqui; já lá vão tantos anos, tugboat captain), quando o último ia andando pelo metro nova-iorquino descalço (história contada por Reed e desmentida por Morrison), e a ideia de Moe Tucker de virar uns caixotes do lixo para servirem de bombos (não se percebe como alguém pôde sentar-se outra vez para tocar bateria) e dos restos de lixo que ficaram no palco e do injustiçado Doug Yule que jamais poderia ser outro Cale e tinha a voz tão bonita e suave, perfeita para cantar o «Candy Says», e até do Steve Sesnick, o agente asqueroso que haveria de dar cabo de tudo, como por aquela Nova Iorque de fantasia, prateada, povoada por secundários formidáveis, drag queens e fotógrafos malucos e dançarinos de chicote, que não mais deixou de ser a minha cidade preferida. Portanto, não me venham falar da influência dos Velvet, da importância de Lou Reed, nessas frases de obituário vago escrito pelo gajo de economia. Isto é a minha vida (e a de todas as outras pessoas que têm a decência de amar esta gente incondicionalmente).
Quanto a “Songs for Drella”, álbum sobre o qual me propus escrever neste texto, não faço a mínima ideia de quando ou onde o adquiri. Tenho impressão que o ouvi na íntegra, ou então terá sido só o “Forever Changed” num programa qualquer da Xfm, mas então já teria o álbum ou então já não me lembro bem.
Ora, Drella, combinação de Dracula e Cinderella, era o petit nom pouco carinhoso que os amigos davam a Andy Warhol quando ele não estava presente, e é curioso que Lou Reed e John Cale o tenham escolhido para homenagear o pai eternamente alheado (mas não ausente: foi sempre uma “presença” nas vidas dos dois – «Forever Changed» -, como na de muitos outros), uns anitos após este ter morrido numa cama de hospital devido a complicações de uma rotineira operação à vesícula. Curioso, não, certeiro título, pois apesar de a veneração que Cale e Reed tinham por Warhol, esta não esconde o ressentimento, principalmente de Lou, que corajosamente o explicita (assim como às suas culpas) nas letras das duas canções finais: «A Dream» (a encenação de um pesadelo de Warhol e do desgosto por todos o abandonarem) e «Hello It’s Me» (a despedida definitiva, que acaba com um “Goodbye, Andy”). Embora o subtítulo do disco, que partiu de uma série de concertos que culminariam na primeira gravação de Cale e Reed em conjunto desde 1968, seja “A Fiction” – e parece que assistimos à construção de um espectáculo da Broadway sofisticado, à laia daqueles que Reed faria depois com Robert Wilson, em que cada canção corresponde a um momento da vida de Warhol ou a um pensamento seu, desde a infância numa cidade pequena («Small Town») e a conquista de Nova Iorque («Starlight»), passando pela sua arte – Warhol foi ilustrador, pintor, cineasta, obra-de-arte – («Style It Takes»; «Trouble with Classicists»; «Images»), à primeira aproximação à morte, quando foi baleado pela artista feminista Valerie Solanis («I Believe») e à decadência dos que os rodeavam, iam morrendo de overdose e outro males («It Wasn’t Me») -, a escrita de Lou não deixa de ser brutalmente honesta, mesmo contra si próprio. A música, essa, já não é tanto de musical, minimalista, repetitiva, dois instrumentos de cada vez – Lou Reed na guitarra e John Cale nos teclados ou na viola d’arco – como que emulando a estética warholiana.
Andy Warhol já morreu há vinte e seis anos. No passado domingo, morreu o grande escritor norte-americano Lou Reed. John Cale, felizmente, está vivo e por vezes pinta o cabelo branco de cor-de-rosa. “Songs for Drella” é das grandes obras americanas do século XX não só pela suas qualidades intrínsecas como por encapsular estas três vidas e toda a história que tentei abordar no primeiro parágrafo, bem mais que muitas biografias, documentários ou livros sobre a época.
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