Stories We Tell
“I’m gonna ask you now to tell the whole story from beginning to end in your own words”
E tu, aceitavas o desafio? Embarcavas numa viagem ao longo das tuas memórias mais íntimas, para as conseguires contar a alguém que não viu nada?
É disso mesmo que trata o brilhante “Stories We Tell”. Aquilo que inicialmente parece ser um desafio simples é, afinal, tudo menos isso.
Sarah Polley assina este emocionante documentário onde, mais do que realizadora, veste também o papel de personagem principal. Uma história que se conta a várias vozes, a partir da reconstrução de vivências passadas relatadas pelos personagens que são tudo menos ficção. São eles o próprio núcleo familiar da realizadora, a quem Sarah lançou o desafio de explicar o passado que os une, ‘pelas suas próprias palavras’, que é como quem diz, através das suas próprias vivências.
O ponto de partida é o momento em que a mãe – Diane, uma actriz e cineasta de espírito livre – fica grávida de Sarah aos 40 anos. A passar por um período conturbado da sua vida, Diane chega a ponderar abortar, mas acaba por ter a bebé. Quando a mais pequena completa 11 anos, um inesperado cancro acaba por separar mãe e filha. Ao desaparecer, deixa naqueles que a rodeavam uma série de interrogações em aberto e deixa também espaço para que a filha e Michael, marido e agora viúvo da cineasta, desenvolvam uma delicada relação onde a cumplicidade e a sensibilidade imperam. No entanto, com o passar dos anos, as diferenças físicas entre Sarah e Michael começam a ser demasiado visíveis, e a dúvida que sempre pairou no seio dos Polleys ganha vida, acabando por se instalar no dia-a-dia desta família. Quando Diane entra em cena a sussurrar ao telefone que Sarah pode não ser filha biológica de Michael, num episódio relatado por um dos entrevistados, entramos numa espécie de teatro no qual se começam a desenrolar uma série de acontecimentos que deixam perceber novos episódios da vida de Diane, ocorridos durante a gravação de uma peça de teatro em Toronto.
Aqui começa o trabalho incessante da realizadora, que vai desbravando caminhos nunca antes percorridos em família, que por sua vez vão dando a conhecer aos espectadores os diferentes prismas que uma mesma situação pode ganhar consoante os olhos e as vivências de quem a conta. Ao longo deste ensaio sobre o processo de reconstrução de memórias, Sarah tenta não interagir muito com os entrevistados e, ao mesmo tempo que regista as respostas de todos os irmãos e amigos próximos da família, em estúdio regista também um texto que o pai lhe dirigiu.
É esta sequência de fragmentos que, de resto, dá nome ao filme. Uma surpreendente reedificação do passado que vai, garantidamente, ser vivido em cada um de nós igualmente de acordo com as nossas próprias experiências. É um convite à reflexão sobre o que são as histórias das pessoas reais, e até que ponto é viável retirá-las de dentro da protecção das nossas quatro paredes. Com ou sem certezas sobre esta questão, o que vai enfeitiçando é a forma tão honesta como tantos e tão diferentes olhares sobre a vida se vão cruzando diante dos nossos.
No final, fica a certeza de que iniciámos o documentário a partir da premissa errada. Se julgávamos que o mais importante era que no final nos fosse desvendada uma verdade, pouco demora até que percebamos que o segredo está antes em toda a viagem que nos levará até lá. Na realidade, algumas das questões que foram pontuando a narrativa continuarão em suspenso ao cair do genérico.
Uma abordagem algo enigmática sobre a própria Polley que revela neste documentário não só uma sensibilidade impressionante, como também uma faceta onde lhe sentimos alguns sentimentos por resolver.
E agora, o que fazer com a constatação da impossibilidade de nos conhecermos verdadeiramente uns aos outros?
Talvez ganhemos uma maior sensibilidade e atenção aos detalhes, a partir de agora. Ou talvez nunca consigamos ser puramente inocentes. Face a ninguém. Face a nada.
Um Documentário que tem estreia marcada nas salas portuguesas a 21 de Novembro. Face a esta realidade, o melhor é vê-lo antes de ter início a temporada das estatuetas, já que “Stories We Tell” surge já como potencial vencedor daquela que premeia o Melhor Documentário.
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