The Tribe Project
Frágil, 5 Fevereiro.
O projecto que se segue pode vir a resultar numa das mais interessantes iniciativas dos últimos tempos no âmbito da fusão cultural musical entre Portugal e o continente Africano.
“The Tribe Project” propõe-se a realizar uma missão que poderia ter-se como óbvia, mas que, por estranhas razões, é comummente aceite como improvável: fazer o reencontro cultural entre a música africana e a música portuguesa. Se a mistura de técnicas, linguagens, sonoridades e instrumentos musicais são um dos mais prolíferos geradores de criatividade e novas ideias, fazer preparando à partida uma equipa musical já de si altamente diversificada não pode se não aumentar ulteriormente a potencialidade da iniciativa. “The Tribe Project” apresenta-se como um projecto cultural e artístico multidisciplinar que visa explorar e documentar a riqueza musical Africana, com um espírito pragmático capaz de transformar uma, como se dizia, ideia óbvia, num projecto de campo real, que, como mais uma vez se dizia, estranhamente parece ser um feito impossível.
Rodrigo Leão, Sara Tavares, The Gift, João Afonso, Laurent Filipe, Bunny Ranch e Peace Revolution serão os enviados especiais de uma mega expedição de cerca de dois anos pelo continente africano em busca dos sons, dos ritmos, dos cânticos e toda uma cultura musical que representa para a humanidade, no seu todo, um dos mais preciosos dos tantos tesouros que o continente naturalmente mais rico do planeta religiosamente guarda dentro de si. Marrocos, Angola, Mali, Quénia, Senegal, Camarões e Burundi serão os destinos das missões culturais dos sete eleitos magníficos do espólio musical contemporâneo nacional.
Os músicos conviverão durante o período de uma semana com sete tribos Africanas com as quais procurarão aprender as suas técnicas, linguagem e tradição musical. Após esse período de pesquisa, cada músico, de regresso a Portugal, comporá e gravará dois temas com total liberdade criativa e nos quais integrará inevitavelmente elementos das culturas musicais permeabilizadas nas suas próprias formas de pensar e criar a música. Os temas serão sucessivamente compilados e editados sob a forma de disco. Cada expedição será acompanhada de uma equipa de vídeo que paralelamente documentará a viagem e pesquisa de cada músico para a produção de sete episódios documentais que registarão o exibirão os passos, vias e processos desta grande aventura musical e cultural.
O sentido de oportunidade desta tribal iniciativa é inatacável. Antes de mais, se considerarmos que a quase totalidade da música consumida nos dias de hoje não existiria se não existisse um continente chamado África. Ainda que salvaguardadas as óbvias confirmações no âmbito da música de dança, a afirmação soa aparentemente a um enorme exagero, mas é-o apenas para os ouvidos menos atentos. Está longe de ser um exagero e a ideia explica-se com poucas palavras e conceitos muito simples. Se não reflicta-se. A música clássica, ou também chamada historicamente a “música branca” é genericamente pouco repetitiva.
É obvio que há casos perfeitamente contrários, como sucede na particularmente jovem “música minimalista” (Glass, Reich, Nyman, para citar algumas das referências mais consolidadas no género e, claro, todos eles pessoas vivas), ou mesmo de algumas formas musicais antiquíssimas como o canon, que representam as devidas excepções à regra. Ao contrário a música africana caracteriza-se pela repetição de motivos rítmicos e/ou melódicos. Foi o jazz que há pouco mais de 100 anos trouxe para o mundo da música branca essa característica musical negra.
Deixando naturalmente de parte o minúsculo nicho da música clássica contemporânea, essa técnica de repetição cíclica de motivos musicais é a base de construção da esmagadora maioria da produção musical dos nossos dias, do jazz ao rock, do funk ao pop, da música electrónica ao “cantautorismo”. Descobrir, compreender e aprender a cultura musical Africana é portanto conhecer a raíz da cultura musical do século XXI.
Segundo, qualquer iniciativa de aproximação cultural entre o nosso país e o continente Africano, não é mais do que o cumprir de um dever cultural nosso para connosco próprios. A História ensinou os Portugueses que a sua brilhante e corajosa iniciativa de “partir na descoberta do mundo” se transformou num cobiçoso (e mais tarde cobiçado) “saqueio pelo mundo fora”. À força, trouxemos tudo, excepto o mais importante: a riqueza cultural. Sim, muita coisa se aprendeu e muitas terão sido as almas que, simplesmente “passando por aqueles lados”, lá beberam e de lá trouxeram tanta experiência, conhecimento e ideias, mas, numa escala geral, trouxemos as riquezas materiais e deixámos a cultura, e dentro dela, uma das maiores riquezas de sempre realizadas pelo homem, a música.
Um investimento que hoje traria certamente os mais promissores resultados. Imagine-se se em vez da França, fosse Portugal o maior produtor do mundo daquilo a que hoje chamamos world music… É essa lacuna que hoje devemos a nós próprios por isso mesmo, e ao mundo inteiro, por privilegiadamente falarmos com grande parte dos nativos Africanos na nossa própria língua.
Por fim, a oportunidade desta iniciativa prende-se com a sua imediatez e tempismo. Com o desaparecimento rápido e massivo das tribos nativas do continente Africano, as raízes culturais da música dos nossos dias caminham a largos passos para a sua extinção. Deste modo e como corolário da definição de História – ciência que visa conhecer o passado, para percebermos o presente e melhor prepararmos o futuro – constata-se que caminhamos a passos largos para a eliminação de um pedaço do nosso passado, com líquidas perdas de conhecimento e informação cultural e artística que nos permitem perceber o presente e preparar o nosso futuro.
E, sendo a Música tida como a mais profunda e poderosa entre todas as artes pela sua capacidade de mexer com a psique e os sentimentos humanos, afastamo-nos sempre mais e mais depressa da possibilidade de compreendermos como se processam tais mecanismos em nós próprios. São iniciativas como estas, que escasseiam pelo mundo fora, e imperdoavelmente rareiam em Portugal, que podem vir a salvar uma boa dose de conhecimento cultural de imensurável valor. O estudo, experimentação e integração da linguagem musical Africana na cultura musical contemporânea são a única via para poder de uma forma iluminada trazer connosco para o futuro um pouco do nosso passado.
Prometendo a edição discográfica para Dezembro 2010 e anunciando a exibição do primeiro episódio em Marrocos para Agosto próximo, a festa de apresentação Tribe Project teve-se no passado dia 5 de Fevereiro no bar Frágil. Foi explicado o projecto e ilustrada a sua evolução nos próximos vinte meses, ao que se sucedeu uma grande jam session com alguns dos músicos que integrarão e realizarão este tão audaz quanto precioso projecto musical. Assim celebraram, quais exploradores navegantes de há 500 anos atrás, a partida para a verdadeira missão de descoberta de inquestionável valor: a Cultura, neste caso sob a forma de Música.
A cada um desses músicos – Rodrigo Leão, Sara Tavares, The Gift, João Afonso, Laurent Filipe, Bunny Ranch e Peace Revolution – e às equipas de vídeo que os acompanharem nós hoje pedimos: tragam-nos tudo o que puderem, mostrem-nos como tudo se faz, ensinem-nos tudo o que descobrirem e aprenderem, pois um dia serão estes registos e os resultados criativo do esforço desta iniciativa uma parte do pouco que restará ao homem para continuar a conhecer o passado, perceber o então presente e planear o vindouro futuro. E fazê-lo sabendo porque é que rimos, choramos, por vezes paramos qualquer coisa que estejamos a fazer, observamos por horas seguidas imóveis em salas fechadas ou dançamos desalmadamente de um lado para o outro, quando há música no ar.
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