“Tinta Simpática” de Patrick Modiano
As lembranças que restam a Jean Eyben resumem-se a um rosto feminino numa fotografia desvanecida numa fotografia e a um nome: Noelle Lefebvre. Quando o corpo deste fantasma continua sem paradeiro, o detetive metamorfoseia-se em escritor, e o passado, num livro escrito a tinta invisível.
História que reflete com subtileza sobre a passagem do tempo e as memórias que lhe resistem, em cujos interstícios perduram situações ou imagens que por vezes se apresentam de difícil assemblage, “Tinta Simpática”, de Patrick Modiano (Porto Editora, 2021), é um romance que começa por evocar o estilo de um enredo policial, para se converter depois num relato mais intimista, revelando o peso do que aquilo que nos parece vulgar e banal poderá, efetivamente, ter nas nossas vidas. E é nesse conjunto de banalidades, que acabam transformadas em algo extraordinário, que assenta o mais recente romance do vencedor do Prémio Nobel da Literatura 2014.
Trata-se, portanto, de uma história de investigação que gira em torno do desaparecimento de Noelle Lefebvre, cuja trama se desenvolve ao longo dos anos, com uma calma e constância, própria de quem já conhece o seu resultado. Um longo período que é a busca do próprio passado de Jean Eyben, a quem foi delegado este caso, aparentemente pouco relevante, por ocasião de um emprego temporário que desempenhou, em busca de material que lhe pudesse servir, na perspetiva futura de enveredar pela literatura.
E é o assombro e persistência das memórias relativas a esse caso nunca encerrado, que o levam a decidir efetivamente pôr a escrito, ao ritmo dos pensamentos, os passos que deu nesta busca.
Trata-se de uma narrativa que maioritariamente se desenrola na primeira pessoa, mas, que a dada altura, inverte a perspetiva e onde o fantasma que procura, se torna o fantasma que contempla, conferindo ao enredo uma complementaridade natural, por via do acréscimo de novas memórias e esquecimentos deste novo ponto de vista, em linha com a temática que pontua a narrativa e com a transversalidade da condição humana. As lacunas de Jean Eyben não são únicas e levam-nos também a nós, a reconstruir o quebra-cabeças de uma vida e a questionar se tudo o que existe poderá estar já escrito.
“Parece que já estava tudo escrito a tinta simpática. Qual é a sua definição no dicionário? «Tinta com que se traçam caracteres incolores e que escurece pela ação de uma determinada substância.» Ao virar de uma página, talvez comece a aparecer, pouco a pouco, o que foi redigido a tinta invisível, as perguntas que me faço desde há muito sobre o desaparecimento de Noelle Lefebvre, bem como a razão por que me faço essas perguntas […]”
O importante não será tanto o resultado dessa busca, mas os efeitos sobre os seus protagonistas temporalmente, onde lembranças são recuperadas à boleia de acontecimentos vulgares, que precipitam a sua revelação, assim como uma fotografia que se revela ou como o calor faz com a tinta simpática que inspira o título.
Nada é extremo ou excessivo nesta narrativa de desenvolvimento elíptico e tanto os acontecimentos quanto os sentimentos surgem naturalmente, sem esforço aparente e despidos de dramatismo, ou seja, como por acaso.
“A linha de uma vida desaparece atrás de todas essas interferências. Como descobrir a verdade com os sinais contraditórios que uma pessoa deixa atrás de si? E sobre mim próprio, a julgar pelas minhas próprias mentiras e omissões, ou pelos meus esquecimentos involuntários, saberei mais?”
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