“Traição” | Luís Mário Lopes
Teatro dos contrários
Em “O Homem Duplicado”, Saramago adianta que «o caos é uma ordem por decifrar», e pelo mesmo princípio se rege “Traição” (Tinta da China, 2014), de Luís Mário Lopes, peça galardoada com o Prémio Luso-Brasileiro de Dramaturgia António José da Silva. O dramaturgo, também experiente em guionismo para cinema (trabalhou com nomes como João Mario Grilo ou Manuel Mozos), penetra num labirinto da psique regida por uma dualidade insana.
Pedro Moreira Alves é um astrofísico que abdica da profissão para dirigir o projecto governamental Vigilância Global, onde «satélites com câmaras poderosíssimas» serão «capazes de registar tudo o que toda a gente faz a toda a hora». Coincidências com o nosso mundo, em que pesadelos orwellianos causados pela NSA calham a estar, volta e meia, na ordem do dia, não são foco demorado na peça: um duplo sinistro de Pedro, referido nas falas como Pedro 2, infiltra-se na vida do “original”. Por trás desta cabala do absurdo esconde-se um tal mafioso quase místico, de nome Mr. World, incitando Pedro 2 a destruir a vida íntima e profissional de Pedro 1. A interpretação do título da obra remete, sobretudo, para o propósito mecânico e inquestionável do duplo de Pedro que, ao tomar a vida do primeiro, se envolve com a mulher do próprio e desencanta uma amante, tornando, no possível delírio do personagem, que seja ele mesmo quem se trai aos poucos.
A pluralidade temática da peça conta ainda com duas metáforas que ajudam (se é que tal é possível) a descodificá-la, contribuindo para adensar o que as demais falas dos personagens pouco alimentam. Se o eclipse solar que tanto interessa a Pedro 1 remete o leitor/espectador para a sobreposição de uma força sobre outra, já a larva transformada em borboleta que o personagem mata, sem dar hipóteses do novo corpo se revelar, ilustra a reserva que tem em relação à mudança. São, de longe, os momentos mais ricos que a peça terá para oferecer.
Certamente “Traição” ganha outra vida quando levada ao palco por gente de “carne e osso”. Porém, como meio exclusivo do domínio literário, não se reveste com embelezamento suficiente para torná-la uma experiência de leitura prazerosa. E não é esse o intuito de quem a criou: é a base e utensílio de trabalho do encenador e actor. Prova dada de que existem peças que dão bons livros e outras que existem apenas para serem levadas a cena.
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