Vão-me buscar alecrim
O Pai Malandro.
Se é para isto que serve o IndieLisboa, já é muito. O vencedor da última edição – um filme que de outra forma dificilmente veríamos ou do qual ouviríamos falar – estreia comercialmente em sala. É uma obra feita a quatro mãos, escrita e realizada pelos irmãos Ben e Josh Safdie, jovens nova-iorquinos que se lançam a uma semi-auto-biografia sobre a sua relação com o pai, ao jeito de “A Lula e a Baleia” de Noah Baumbach.
Os irmãos Safdie não se coíbem de mostrar as mazelas deixadas por um pai negligente e à deriva, nem têm problemas em afirmar que a figura daquele pai (o do filme) é muitíssimo inspirada na do seu próprio e que “Vão-me buscar alecrim” é um exorcismo dos seus fantasmas de infância. É tão pessoal e sincero como um filme pode ser – até os seus artifícios são honestos -, de tal modo que desmascara a falsidade de tantos e tantos outros que se recordam como verdadeiros e realistas.
Os americanos têm uma capacidade de auto-análise temerária, enfrentam os seus demónios face a face, com uma brava honestidade, com uma abertura que nos deixa a nós, púdicos europeus, embaraçados. Um filme europeu, ou feito por um europeu, sobre o mesmo tema, teria possivelmente as mesmas preocupações, que seriam no entanto tratadas de uma forma bem mais velada. Aí reside a grande diferença cultural entre americanos e europeus (ou será entre protestantes e católicos?)
Mas “Vão-me buscar alecrim” não é um “j’acuse”, o filme consegue criar empatia pelo seu protagonista – uma criança grande que não devia tomar conta de outras crianças – se deixa os seus defeitos e pecadilhos à mostra, para todos verem, sem nunca procurar justificações, tem-lhe amor. O retrato daquele pai alia à crueldade, à lucidez dolorosa, uma doçura infinita.
Feito com pouco recursos, “Vão-me buscar alecrim” deve muito ao trabalho dos actores não profissionais – cineastas ou filhos de – e ao argumento muito sólido, ao qual todos os improvisos não retiram precisão e acuidade. A forma de filmar frenética, de câmara ao ombro, não subtrai nada a este rigor, insufla, isso sim, a vitalidade estonteante do filme.
Apesar do estilo, “Vão-me buscar alecrim” não se deixa sufocar pelo espartilho do realismo – que é uma quimera cada vez mais desinteressante -, vagueia sem medo por uma Nova Iorque artificiosa, como que perdida nos anos 80 pré-Giuliani, onde gatunos com a cara de Abel Ferrara apontam armas e metem medo e mosquitos gigantes saídos do Museu de História Natural assolam as casas das pessoas. É mais onírico do que documental.
Por muitos filmes que se tenha visto – a maioria dos quais apenas razoável, outros ainda verdadeiramente maus ou detestáveis, com todo o cansaço e desalento que isso provoca – “Vão-me buscar alecrim” renova a paixão pelo cinema e faz esquecer todos os enfados. Uma pedrada no imenso charco do pastelão, do bem feitinho, do porreirinho. O melhor filme a passar pelas salas portuguesas este ano.
Estreia a 15 de Julho.
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