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Um coliseu demasiado grande para uma festa enorme

A festa do hip-hop português proporcionou momentos e encontros históricos, em espírito back in the days

Comecemos por aqui: o primeiro concerto de hip-hop de que me lembro de assistir aconteceu há muito tempo atrás: teria eu uns 12 ou 13 anos e os Mind da Gap, então uns ilustres desconhecidos, actuavam na FNAC de Santa Catarina, inaugurada pouco antes. Três rapazes sem instrumentos nem voz para cantorias pisavam o palco de uma mini sala de concertos a rebentar pelas costuras. Era o tempo das calças (aem’kei, lembram-se?…) e t-shirts largas (entretanto trocadas pela moda hipster), das mochilas e dos bonés. Essa tarde era, também, o pretexto para cantar “Sem Cerimónias” (1997) e “A Verdade” (2000), dois álbuns que, entretanto, viriam a alcançar o estatuto de culto entre os ouvintes de hip-hop português.

O que mudou desde então? Uma infinitude de coisas, mas três com toda a certeza: mudei eu, mudaram os Mind da Gap, mudou o hip-hop português. Desde logo porque, da indumentária acima referida, praticamente só restam os bonés. Mudou, também, o aparato técnico: o hip-hop já não se toca só com pratos e microfone, como se pôde ver pelas actuações de NBC ou MDG. Depois, porque se tratava, como se escreveu por aí, de um mini-“festival” (um mini-mini Rock the Bells) de hip-hop – sim, o hip-hop também já tem festivais! – organizado pela novíssima produtora Vicious Events. Como se tem lido, a Vicious (da qual faz parte Fuse, dos Dealema), divulgada maciçamente em tudo o que é publicação (ípsilon incluído), nasceu do intuito de promover o hip-hop com a mesma “dignidade” e estrutura que qualquer outro género musical. Há, portanto, toda uma sensação de “emancipação” artística e mediática em redor da produtora, bem visível na – arriscada – jogada de levar o hip-hop para o Coliseu, como forma de dizer: “sim, nós também estamos no Coliseu, nós conseguimos!”. Foi, de resto, o que, por várias vezes, exaltou Deau para um público extasiado: “das ruas para o Coliseu!”. Esta afirmação sintetiza, de facto, todo o percurso artístico e sociológico percorrido pelo hip-hop português desde que, nos idos de 1994, surgiu o primeiro álbum do género, “Rapública”. Percurso que lhe tirou as amarras das ruas e dos bairros (as “amarras”, não dizemos que já lá não está – e é bom que nunca deixe de estar) e o atirou, muitas vezes desnorteadamente, para as televisões (a geração “morangos” cresceu a ouvir «Brilhantes Diamantes», por exemplo), para as rádios, para a moda urbana da classe média, enfim, para o dia-a-dia. Mas não tenhamos ilusões: essa relativa “mediatização”, além de só ter apanhado dois ou três nomes (Boss AC, Mind da Gap), foi acompanhada de uma enorme degradação, que fez associar ao hip-hop coisas inclassificáveis (esses pseudo rnb e afins de mau-gosto) e os clichés do costume.

Celebrate good times: os Micro e muito mais

Mas o evento de sábado, não pretendendo ser apenas um manifesto, foi, é preciso dizê-lo, uma verdadeira celebração: pelo palco passaram alguns dos maiores símbolos do hip-hop português (quer no microfone, quer nos pratos), só ficando ausentes – sugerimos nós – as outras duas vertentes: o breakdance (e era fácil incorporá-lo) e o graffiti (mais difícil). O cartaz dizia ao que vinha: à excepção de Deau, todos os outros nomes são figuras de proa do panorama nacional. Até os Micro (aka Microlândia), colectivo histórico de Lisboa, disseram “sim” à chamada – eles que já nem editam nada há uma carrada de anos, se bem que os seus membros (Nelassassin, talvez o n.º 1 dos pratos em Portugal; D-Mars e Sagas) nunca tenham deixado de estar no activo a título individual (Sagas anunciou mesmo o lançamento do seu novo álbum para breve).

 

O aquecimento da noite coube a Deau. Compreende-se a escolha de Deau para um cartaz de veteranos: o rapper da nova escola portuense goza de um prestígio (street cred, para bom entendedor) ímpar junto do público (não só do Porto – vejam um clip que anda no youtube com Deau a improvisar na Zé dos Bois) desde que, há uns anos, explodiu com «Lamento», tema que não deixou de tocar no Coliseu, para gáudio dos presentes. Imparável em palco, e muitíssimo bem acompanhado pelos dois rappers de apoio e por D-One nos pratos, Deau foi muito acarinhado, sobretudo em faixas como «Teresinha» (onde voltou a chamar a sua irmã ao palco) e «D.E.A.U.», single de estreia do seu último álbum (“RetiEssencias”, 2012). Por esta altura, ainda se pensava que a fraca afluência (nem meia casa) se devia à hora (os concertos começaram às 20h), o que, infelizmente, viria a ser negado noite dentro.

Num reencontro duplamente histórico (entre si e com o público), os Micro subiram ao palco como se nunca se tivessem separado: Nel Assassin “brincava” com os pratos, acompanhado pelas rimas do beastieboyeano D-Mars (ele que, entretanto, foi construindo uma bela carreira a solo na fusão entre o jazz e o hip-hop) e Sagas. Foi notório o relativo desconhecimento do público (bastante jovem) em relação a estes dinossauros do hip-hop português, que nunca conseguiram inflamar as hostes. «Respeito» foi a faixa com que os Micro se despediram de um público algo alheado (“Tudo o que foi feito / será um dia desfeito / se não deres respeito / a quem dá a cara e o peito”), mas a quem caberá explorar, por si, as origens daquilo (hip-hop) que hoje consome (o que não é fácil – uma pesquisa pelo youtube diz-nos que é urgente alguém postar mais sons do grupo).

 

Em dia de manifestações um pouco por todo o País, coube a NBC arrancar o momento político da noite. Muito barbudo, o rapper e cantor lisboeta, autor do seminal “Afrodisíaco” (2003), mas que, no presente, tem explorado sonoridades mais próximas do funk e da neo-soul (daí se ter feito acompanhar de uma bateria e de um baixo, além de DJ), revelou-se um autêntico animal de palco, num estilo performativo impressionante: de olhos proféticos muito abertos, contorceu-se, ajoelhou-se, deitou-se, esbracejou. Depois de ter passado, na escuridão total, uma reportagem sobre o recente massacre policial na África do Sul, NBC cantou, com dor, o manifesto «Homem», belíssima canção do seu último disco (“Maturidade”, 2008). Provavelmente, para os ouvintes mais jovens (para não dizer adolescentes) presentes (e não eram poucos), este foi um momento que lhes passou ao lado; mas convém lembrar-lhes que o hip-hop veio daí, das ruas – não das ruas dos cadillac e das bitches, mas das da luta política e cívica. Muito assertivo (foram inúmeros os apelos à luta e à revolução), NBC conseguiu, ainda, momentos de belo efeito junto do público, com «NBCioso», «Segunda Pele» (em que chamou pessoas do público para cima do palco) ou o clássico «Pela Arte» (“Se quiseres saber mais /então veste-te a rigor / é a maneira de mostrares amor”). Foi um dos grandes concertos no Coliseu, e só pecou pela sua curta duração (30/40 min.).

O grande momento da noite, e quiçá o mais esperado, foi a reunião de Sam the Kid e Mundo Segundo num só palco (depois de já o terem feito, há uns tempos atrás, no Hard Club, numa “batalha” de beats). Eles que andam, há já algum tempo, a confeccionar um aguardadíssimo álbum em conjunto. Acompanhados, respectivamente dos seus DJs (Cruzfader com o lisboeta; Guze com o portuense), os dois rappers e produtores – provavelmente, os dois maiores nomes do hip-hop português a sul e a norte do país – levaram o coliseu ao rubro. A estratégia era clara: em noite de veteranos, optaram por desfilar alguns dos seus maiores clássicos. O entrosamento não foi perfeito, mas viu-se bem como ambos conheciam as músicas de cada um, outra forma de dizer que a admiração é mútua. De Mundo, ouviram-se temas mais antigos («Pacífico», «Sólida Oportunidade de Mudança») e alguns mais recentes, inclusive da sua última mixtape (“Mundo Segundo Vol. II”), como a bombástica «Mais linhas». Por seu turno, Sam the Kid deu ao público o que ele queria ouvir: «O Recado», «Motivação», «Não percebes» foram alguns dos clássicos que ecoaram pelo Coliseu, juntamente com temas mais recentes como a electrizante «A partir de agora» e «Juventude é mentalidade». Tempo, ainda, para outro momento histórico (foram vários, acreditem), quando Sam chamou Sagas ao palco e cantaram «O Ideal», um clássico retirado do fundo do baú. Foi, na nossa opinião, o grande concerto da noite (e o mais longo), com direito, ainda, a uma homenagem sentida a dois rappers (ambos amigos de Sam, ambos de Chelas) falecidos recentemente: Snake e GQ.

 

Fenómeno underground desde o começo (e desde “O Começo”, já agora), os Dealema jogavam claramente em casa: nos dias que correm, em qualquer lugar do Porto onde toquem, são sempre recebidos entusiasticamente, como se não houvesse amanhã. No sábado, não foi diferente. O coletivo de “Nova Gaia” esteve igual a si próprio, tocando clássicos («Bofiafobia», «Talento Clandestino», «A cena toda») e temas do seu último disco (“A Grande Tribulação”, 2011) para uma plateia com as letras na ponta da língua (como um rapazito, com não mais de 10 anos, que, junto dos pais, cap na cabeça, cantava e esbracejava!).

O encerramento do Coliseu ficou nas mãos dos Mind da Gap. Foi uma opção discutível, e talvez o melhor tivesse sido mesmo colocar os Dealema como últimos em palco. Na verdade, assistiu-se a uma certa debandada (a par da “D’Bandada”, esta da Optimus, que decorria, àquela mesma hora, na baixa da cidade), motivada pelo adiantado da hora e porque os MDG não têm, definitivamente, o mesmo carisma que os DLM. Ainda assim, o grupo arrancou um bom espectáculo, com Serial (pratos), muito bem acompanhado por um teclista e uma bateria, a fazer desfilar alguns dos sons mais melódicos do grupo («Não stresses» e «Essência», com Maze) e outros icónicos («Bazamos ou ficamos», «Falsos amigos» e a inevitável «Dedicatória» – espera-se que, por esta altura, já todos saibam que esta não é uma dedicatória a nenhuma miúda). De “Regresso ao Futuro”, álbum com lançamento previsto ainda para este mês, ouviram-se os dois singles já a rodar na net: «Este beat» (um tributo à importância do beat na cultura hip-hop, tanto para MCs, como para DJs e B-Boys, segundo Ace) e «O jardim», onde houve oportunidade para chamar ao palco Rey, um dos pioneiros do underground do rap nacional (“um homem que há muito merece afirmar-se definitivamente”, novamente nas palavras de Ace). O colectivo privilegiou o público, ainda, com mais três faixas do álbum que está para sair, duas delas com os convidados (de luxo) Sam the Kid e Dealema.

 

A “aposta Coliseu”

Em fim de festa, importa fazer um balanço final. Em primeiro lugar, sublinhar a genuína boa vontade de quem organizou tudo isto, numa verdadeira demonstração de amor à arte. Que a Vicious Events prossiga na organização de mais concertos com cartazes desta envergadura só é positivo. Por outro lado, a festa serviu para confirmar um aspecto importantíssimo no actual estado do hip-hop nacional: o espírito de colaboração entre os artistas, que fez com que estes se fossem revezando nas chamadas ao palco para tocar em faixas de outros grupos.

Depois, há que reflectir sobre a “aposta Coliseu”, que revelou pontos positivos e negativos. De bom, há a destacar, além do carisma e da “dignidade” de que goza esta sala de espectáculos, a qualidade do som, que foi, indubitavelmente, incomparavelmente melhor do que a que muitas vezes se testemunha noutros locais. Do lado dos “contras”, destaca-se, em primeiro lugar, o público (ou a falta dele). A casa não encheu, nem perto disso – no concerto de Mundo e Sam, ou mesmo dos Dealema, que foi quando se registou a maior afluência, o público nem sequer até à mesa de som (sensivelmente a meio do palco) chegava. E perguntamos: a não ser que os organizadores estivessem com excessivas expectativas, por que razão não se fecharam as tribunas, onde se acomodou muita gente (como é possível passar um concerto de hip-hop todo sentado é coisa que não ousamos compreender), despindo, ainda mais, a plateia de pé? Embora seja certo que outros factores entrem em cena (era um dia a rebentar de eventos na cidade do Porto, com uma manif à mistura; o preço dos bilhete, não sendo caro para um concerto no Coliseu, talvez fosse um rombo considerável num período de crise como o actual), esse parece ter sido, definitivamente, um aspecto menos conseguido. O sistema de intervalos de 10 min. entre cada concerto também não funcionou em pleno, obrigando a um vaivém permanente, ao que acresce a duração reduzida de concertos que mereciam mais tempo de antena (sobretudo NBC).

Talvez uma aposta menos ambiciosa (Hard Club, pois claro) tivesse, ainda assim, cumprido melhor os propósitos desta celebração do hip-hop nacional. De qualquer forma, é, precisamente, no Hard Club que, dia 3 de Novembro, se realiza a próxima Vicious Hip-Hop. Até lá, então!

Fotografias por Marta Resende



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