“Vida Roubada” | Adam Johnson
Se te aguentares o tempo suficiente, alguém está a caminho
Na literatura, quando queremos falar do lado negro do poder exercido sob a forma de um absolutismo extremo, é imperioso recorrer ao triângulo “1984” – “Admirável Mundo Novo” – “Nós”. Porém, se quisermos transpor essa ideia de privação humana de oxigénio e controlo da mente para a realidade, mesmo que para um real a que é necessário acrescentar algum espírito inventivo, o destino final será, muito provavelmente, a sombria Coreia do Norte.
Muitos habitantes exteriores tentaram – na maior parte das vezes trocando os pés pelas mãos – já ilustrar o estado absolutista e desumano em que este país está submerso, mas provavelmente ninguém o terá feito como Adam Johnson em “Vida Roubada” (Saída de Emergência, 2014), livro que levou para casa o prémio Pulitzer em 2013.
O livro está construído em torno da figura de Jun Do, filho de uma cantora misteriosa e de um pai opressivo, uma espécie de guardião dos órfãos de um lar chamado Longos Amanhãs. Como filho do director, Jun Do vai conhecer desde muito cedo a forma como está estruturado o poder. É ele quem decide que órfãos comem primeiro, os que serão enviados para trabalhos forçados ou aqueles que terão direito a melhores camas.
Com a chegada da epidemia da fome – descrita pelo líder como uma árdua marcha -, Jun encontra a salvação ingressando no Exército, tornando-se um soldado de túnel responsável por inúmeros raptos e trilhando um caminho do qual não haverá possibilidade de regresso. Seguir-se-á a vida no mar, onde trabalhará escutando transmissões de rádio. Enquanto procura ameaças vindas do exterior, Jun conhecerá uma outra realidade que não a sua, seja ao escutar uma louca tripulação russa ou partilhando a arriscada viagem de duas remadoras americanas, que todos no barco vão seguindo como uma telenovela. Será também no mar que Jun, para contornar a sua indisfarçável habilidade como marinheiro, receberá no peito a tatuagem de uma mulher, que na inexistência de uma esposa será ocupada pelo desenho de Sun Moon, a lendária (e única) actriz da indústria cinéfila norte-coreana.
Quando regressa de uma visita aos Estados Unidos, e apesar de sempre se ter mostrado um leal servidor, Jun Do vê-se atirado para uma prisão inóspita, da qual sairá tomando o lugar do maior rival do Líder Kim Jon II, com a missão de salvar a mulher tatuada na sua pele como uma estranha premonição.
Com uma narração partilhada entre dois narradores, Adam Johnson transmite de forma surpreendente a opressão sentida pelos norte-coreanos, seja através dos altifalantes instalados em cada casa que debitam a cartilha do Grande Líder, do medo que corre nas veias misturado com o sangue, dos maridos de substituição impostos às mulheres, do desvio das mulheres bonitas para se juntarem ao harém particular do Grande Líder, do sistema de classificação de classes a fazer lembrar “Admirável Mundo Novo” ou da cerca electrificada que faz da Coreia do Norte a maior cúpula do mundo, onde quase todos vivem sem telefone, sem internet, sem liberdade e sem esperança, esperando que a fome ou o terror lhes confira um ponto final a uma existência curvada.
Entre o thriller e o romance, Adam Johnson apresenta em “Vida roubada” a jornada de um herói atormentado que, à sua maneira, consegue fazer um buraco no sistema. «Alguém te irá salvar. Se te aguentares o tempo suficiente, alguém está a caminho», lê-se a certa altura. Jun Do não aguentou esperar e trilhou o seu próprio caminho. Resta esperar que os outros, um dia, também o façam. Cinco estrelas.
There are no comments
Add yoursTem de iniciar a sessão para publicar um comentário.
Artigos Relacionados