“Vladimir”, de Julia May Jonas
Declaração astuta sobre as contradições do poder e do desejo, com notas de Nabokov e #MeToo
“Vladimir” (Quetzal, 2023) é o romance de estreia de Julia May Jonas e onde esta explora o modo como o desejo, a raiva e a criatividade se podem emaranhar na composição de um romance inteligentíssimo e cheio de humor.
Na verdade, o (literal) levantar do véu começa ainda na capa, com a representação de um torso masculino bem definido, sob uma camisa que se abre à passagem de uma mão feminina – não há como confundir, o tema principal deste romance, é o desejo. O título do livro sobrepõe-se à referida imagem e, no fim de contas há apenas um Vladimir que reina supremo no género literário, numa clara alusão a Nabokov confirmada na primeira frase: «Quando eu era criança, adorava os homens velhos e sabia que eles também gostavam de mim». É “Lolita”, se Humbert Humbert fosse o objeto e a jovem e a sua libido estivessem no comando.
Nesta história, a narradora é uma mulher com mais de 50 anos, autora de dois romances (o primeiro uma promessa, o segundo um desastre) e professora de Literatura, extremamente popular junto dos alunos e entre os seus pares. No entanto, quando o romance começa, a nossa narradora vê o seu estatuto e as suas credenciais feministas ameaçadas, em consequência das acusações de conduta sexual indevida do seu marido junto de várias alunas ao longo dos anos. John, também ele um professor apreciado, é o diretor do departamento de Inglês da pequena faculdade onde ambos lecionam, e como resultado das referidas acusações e da pressão inerente à existência de uma petição com mais de 300 assinaturas, encontra-se suspenso enquanto aguarda audiência. Os encontros em questão são todos anteriores à explícita proibição do envolvimento entre professores e alunos, mas com o advento do #MeToo, ninguém parece realmente interessado nesse pormenor. Acresce ainda que o casal sempre teve um casamento aberto, e por isso a nossa narradora estava vagamente ciente desses casos com estudantes, o que ainda assim não impede, mas antes amplifica, o desconforto de ambos os conjugues pela exposição e escrutínio da sua intimidade.
«[…] o meu marido e eu tínhamos o acordo tácito de sermos ambos sexualmente livres durante o nosso casamento. Não havia perguntas nem confissões, apenas comentários espontâneos, ou acenos. […] Eu gostava da ideia de John ser um homem viril, e gostava do espaço que os seus casos extraconjugais me ofereciam. Era uma professora de Literatura, a mãe de Sidney e uma escritora. O que faria eu com um marido que precisasse da minha atenção?»
Já acerca da situação do marido, é este o modo como inicialmente a nossa narradora expõe a sua opinião muito pessoal:
«Tempos houve em que todos nós teríamos considerado estes casos consensuais, porque o eram. […] Hoje porém, as mulheres jovens deixaram de ter qualquer livre-arbítrio sobre os seus enlaces amorosos. Hoje, o meu marido abusou do seu poder, ainda que esse poder tenha sido a razão por que, à partida o desejaram. […] A minha indignação não decorre tanto das acusações em si, mas da falta de autoestima destas mulheres – a sua falta de confiança em si mesmas. Oxalá conseguissem ver-se a si próprias não como pequenas folhas de árvore varridas pelo vento de um mundo que não lhes pertence e sim como mulheres sexuais e poderosas, interessadas numa certa dose de risco, de tabu, de diversão. Dada a tendência generalizada e altamente discutível no sentido de uma insistência populista na moralidade da arte, considero ofensivo, enquanto mulher, este puritanismo post hoc. […] Quanto à idade das mulheres, sentia-me ainda demasiado ligada às experiências que tivera quando andava na faculdade para levantar objeções. Nos meus tempos de aluna, o desejo que eu tinha pelos meus professores era esmagador. […] Desejava-os porque pensava que eles tinham o poder de me dizerem coisas a respeito de mim própria.»
Será um raciocínio desdenhoso e no mínimo frívolo – ela parece desconsiderar o facto de o seu marido se aproveitar de gerações de mulheres jovens – mas é definitivamente uma forma hábil de apresentar a situação, de um modo professoral, que levanta novas questões e inclusivamente incita o leitor a observar as coisas de outro ponto de vista. Para ela não há abuso de poder, porque a atração sexual é sempre uma questão de poder, sugerindo no limite que a moralização sobre o sexo consensual pode ser um empreendimento profundamente limitante e aniquilador do desejo.
Mas o Prólogo, tão pertinente e denunciador do rumo dos acontecimentos, não nos traz ainda nenhum destes detalhes. Em vez disso, ficamos a saber que o riff de abertura sobre velhos e crianças foi escrito enquanto contemplava Vladimir, o homem feito objeto, inconsciente e acorrentado a uma cadeira, aprisionado pelas fantasias eróticas da narradora, que deambula por raciocínios sobre os absurdos e mortificações do envelhecimento e da vergonha sexual, bem como sobre as mudanças na dinâmica de poder.
Embora a narradora prossiga no anonimato, o sujeito da capa é certamente o próprio Vladimir, um professor recém-contratado e romancista em ascensão, com uma forma física e pose naturalmente sedutoras e sensuais, com que reacende, involuntariamente, os desejos mais profundos da nossa narradora. Na sequência do primeiro encontro de ambos, a nossa narradora enceta a convite do próprio, a leitura do romance de Vladimir e sente-se «invadida por uma mistura de admiração genuína e de inveja profunda», de onde nasce a dúvida (na narradora e no leitor): Ela quer Vladimir ou quer ser Vladimir? A maravilha deste romance está na resposta: ela quer os dois. Com efeito, torna-se claro que o seu desejo sexual por Vladimir é bastante real, mas o que ele reacende nela é mais essencial: o impulso para criar. A narradora tem plena consciência de que não é mais um objeto sexual. Ela sempre foi vaidosa, mas agora censura-se por cada ruga ou marca, vestindo-se meticulosamente e controlando ferozmente o peso. Esse auto-exame é brutal e apesar de todo o ritual de cuidados a que se presta, não suporta ainda assim a ideia de ser olhada. Incapaz de se expressar fisicamente, o seu desejo sexual reprimido irrompe na página e ela recomeça a escrever febrilmente. Simultaneamente canaliza as suas consideráveis habilidades intelectuais e manipulativas para prender Vladimir, a quem seduz com bajulação intelectual, atenção, comida e álcool. É lento, deliberado, decisivo e, como sabemos, levará ao ponto em que ela o acorrentará àquela cadeira. A questão é: como e porquê?
«Mas as pessoas rir-se-iam do ridículo da situação: aquele pedaço de homem, com a sua mulher ortodoxamente atraente a tentar seduzir uma criatura pós-menopáusica como eu. Seria uma perfeita piada. Lembro-me da nossa crueldade com Monica Lewinsky, que considerámos uma amante indigna de Bill Clinton […] o homem mais poderoso do mundo naquela altura, e todos nós abanámos a cabeça por não ter ao menos escolhido dar a sua atenção a uma modelo dos anos 90, ou a uma estrela de cinema. Aquela amante dera-lhe um ar de homem fraco e desesperado.»
A narradora conhece o que pensa, confia nos seus próprios julgamentos e muitas vezes debita as suas opiniões como truísmos. A saber: os homens mais bonitos vivem no campo, enquanto as mulheres mais bonitas vivem na cidade; Nenhum cigarro é melhor do que aquele que vem depois de um choro torrencial; Um bom bife não deve ter nenhum tempero além de sal e pimenta, e qualquer molho de tomate fica melhor com anchovas e azeitonas; A verdade na arte só pode ser encontrada fora dos limites da moralidade. E por entre tantas certezas, a princípio parece que caminhamos para uma conclusão clara, mas com o avançar da história a narradora também se depara com certas dúvidas, nomeadamente acerca da retidão da satisfação irrefletida dos seus desejos, sem levar em conta os demais sujeitos envolvidos. São estas as forças tão problematicamente interligadas e perturbantes para a narradora e, em cujos hiatos, Jonas vai desdobrando a narrativa – e seguramente que se delicia a fazê-lo.
Com uma voz potente e vibrante, Jonas desenhou uma personagem poderosamente sincera e predatória, à boleia da qual viajamos por uma “Montanha Mágica” num vórtice delirante de raciocínios vários com que descobrimos outros “Modos de Ver” (e a colocação destas referências às obras de Thomas Mann e John Berger, respetivamente, também não é inocente). A sua pertinência é tanto maior, quanto o contexto em que vivemos, terrivelmente marcado pela cultura do cancelamento, culminando na onda atual de censura e policiamento de ideias, e possivelmente também por isso Jonas – conforme sucedera com Nabokov – levanta a questão de como determinamos o valor da literatura. Podemos procurar suprimir aquilo que perturba o nosso sentido de moralidade ou podemos envolver-nos com o que é perturbador, ofensivo e profundamente errado. E, a leitura deste livro, é definitivamente uma forma divertida de o alcançar.
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