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“Wanderlust” – “Amor e Outras Cenas”

Os maus filmes às vezes também nos podem fazer pensar

O sub-título que encabeça este artigo pretende, desde logo, evitar equívocos funestos: “Amor e outras cenas” (sic) – tradução, a partir de “Wanderlust”, que espelha bem o vazio que vai nas cabeças de quem é responsável por estas coisas – é, à semelhança da ração chapa-5 com que a indústria de Hollywood vai alimentando a besta há anos e anos, um filme perfeitamente anódino, sem ponta de inspiração cinematográfica ou, sequer, de pretensão a tal (nestas coisas, a pretensão ainda é preferível à descerebração pura e simples). Um filme que junta caras bonitas (Aniston, Malin Akerman) a uma historinha com um princípio-meio-fim muito convencional.

Mas, e este é o “mas” que nos move a escrever estas linhas, “Wanderlust” não deixa de possuir um subtexto que, visto com olhos de ver – e o olhar não deve ser preguiçoso, mesmo que o objecto seja, a priori, de qualidade mais que duvidosa –, não é de desdenhar, pela crítica ácida sobre alguns tiques da sociedade ocidental pós-moderna.

Num livro publicado em 1983, chamado “A Era do Vazio”, o filósofo francês Gilles Lipovetsky fez um diagnóstico profundo da era pós-moderna, cujo epicentro se localizaria num brutal processo narcísico pelo qual o indivíduo, virando-se intensamente para si mesmo (os seus problemas psi, o seu corpo, a aparência, a saúde, etc.), para o seu “eu” existencial, se desliga de outras esferas da vida social, com a política à cabeça. Paralelamente a este desligar, digamos, do “exterior”, os indivíduos passam a fazer um investimento desmesurado no seu “eu”, elevado a bem primordial. Para se chegar a este estado das coisas, a consolidação da sociedade de consumo e bem-estar foi fundamental, na medida em que prescreveu um “direito” de todo o indivíduo à fruição de si mesmo (por aqui se vê como o cuidado com o corpo atingiu, entretanto, os níveis que conhecemos – cirurgias plásticas, ginásios, alimentação light, etc.) e adormeceu, qual valium social, a “questão colectiva”. Essa obstinação, difusa e complexa, explica o aumento exponencial, nos últimos 20 anos, do interesse das sociedades ocidentais por práticas tão díspares como o yoga, o reiki, o budismo, enfim, toda uma onda zen – infelizmente, pouco menos que experienciada em modo “chiclete”, mastiga-deita-fora – muito longinquamente conectada com o espiritualismo oriental (que hoje tem tanto de espiritual como de pop), e que traduz um intenso trabalho e aperfeiçoamento do ego.

É a este propósito que o filme de David Wain (nenhum filme relevante na carreira, não percam tempo) tem algum interesse. Confrontando a vida de um casal (George e Linda) na cidade (acelerada, materialista, desumana) com a de uma comunidade hippie-freak-zen, chamada Elysium, no campo, poderíamos ser tentados a pensar que, à boa maneira pipoqueira, o filme faria a apologia, fácil e superficial, desta última, através dos olhos do casal citadino que, muito parvinho e deslumbrado, iria conhecer os “verdadeiros” valores da vida, a “verdadeira” felicidade. E, efectivamente, o filme ameaça fazê-lo, na primeira parte. Contudo, num twist progressivo (primeiro, através do marido, depois, pela mulher), o filme vai, a espaços, pelo meio de muita inânia, desvelando, com subtil cinismo, alguns “podres” do Elysium, que não são mais dos que os podres de toda uma cultura global que, pretendendo-se muito alternativa e genuína (na sua ligação com a natureza e com os valores da liberdade e igualdade), mais não espelha, muitas vezes, um vazio de ideias em que o simbólico é quem mais ordena.

Logo que o casal chega ao Elysium, há uma cena de uma ironia assassina: é quando Seth (o guia, xamã, etc.), perante o deslumbramento de George e Linda, lhes diz qualquer coisa como: “atenção: nós não somos uma cambada de hippies sentados a fumar charros e a rir”. Em vez de charros, é peyote…

Também no suposto “altruísmo” e fraternidade, não se coíbe o filme de atacar, de fininho, o Elysium, o que é visível, designadamente, na cena em que a dona da estalagem diz ao casal, após este ter passado a primeira noite num belo quarto e decidido por ali ficar uns tempos, que têm de mudar para outro, porque aquele é para “dar dinheiro” (o próprio Seth há-de vender-se por um apartamento em Miami). Por sua vez, a ideologia da transparência – tão pós-moderna – é também fortemente parodiada na sequência em que Linda consome, inadvertidamente, alucinogénios. Outro exemplo: na cena em que os mal-feitores de serviço anunciam a construção de um casino nas terras do Elysium – e a escolha do casino não é inocente, porque é propositadamente caricatural –, a única forma de reagir naquele momento é encontrada por Linda, mulher “fútil” da cidade, que, depois de ignorada pela jornalista-voyeurista de serviço, lhe rouba a atenção ao despir-se perante as câmaras, atitude que é seguida pelos restantes, que se regozijam com o acto heróico. É este o vazio: a nudez, o “sensacional”, e não a palavra, a acção política ou as ideias, é que são capazes de mudar o que quer que seja – e para nos pormos nus, não precisamos de ser freaks

Mas a machadada mais mordaz, ainda que doce, do filme, é dada já no final. Linda, farta de ser vegan, vai até a um restaurante da cidade para comer um bom bife. Aí, encontra Carvin, o velhinho histórico do Elysium – de quem se esperava um purista – a comer o mesmo que ela – “venho cá todos os domingos, não aguento aquelas porcarias verdes a semana toda”. Este desmoronar, puro e duro, de uma ilusão traduz um desacreditar colectivo em formas alternativas de estar na vida. Se isto não é cinismo…

Se é verdade que os maus filmes, normalmente, apenas nos fazem sublimar, ainda mais, os bons, “Wanderlust”, não deixando de ser um esquecível blockbuster industrial, tem a coragem de pensar um bocadinho out of the box. E isso, nos tempos que correm, já é de assinalar (ainda que não valha o bilhete).



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