“Zama”, de Lucrecia Martel

“Zama”, de Lucrecia Martel

As pontes quebradas.

Em muitas ocasiões, as expectativas em relação a um realizador podem acabar em grande desilusão. O melhor remédio para não sofrer é não alimentar expectativas de uma forma inconsciente e solta e esse foi precisamente o percurso calcorreado em alegre inconsciência pela signatária destas linhas. Depois de uma sessão ingloriamente perdida de “Zama” no IndieLisboa porque esgotadíssima, foi apenas na estreia e novamente com a presença da realizadora, que esteve no país durante o festival e nas primeiras apresentações do filme para conversar com o público, que foi possível ver aquilo de que, afinal, toda a gente falava. E toda a gente falava de “Zama” porque não se parece com nada do que já se tenha feito antes e também porque Lucrecia Martel tem uma excepcional e certeira carreira no cinema que, apesar de esta ser a sua 4ª longa-metragem (tem curtas no seu percurso como realizadora), demonstra uma linguagem tão sua e, simultaneamente, uma atitude tão desprendida do mundo material quanto presente (exactamente com esta incongruência constante), que a expectativa após cerca de 9 anos sem filmar era enorme.

Em “Zama”, como nas outras obras de Lucrecia Martel, em aparência não se passa nada durante mais ou menos duas horas de filme. É possível que nos primeiros planos do filme não se passe nada e que, no fundo, as entrelinhas são tudo o que interessa – afinal, Don Diego é um marginal da sociedade em que se move e, em última instância, da sua própria vida. Belíssima a fotografia do português Rui Poças, que ajuda a mascarar a dura realidade com as poeiras do sonho, por baixo dessa ilusão “Zama” é implacável embora não tão implacável como o livro que lhe deu origem, escrito nos anos 50 da século passado pelo escritor e jornalista argentino António di Benedetto. Para Lucrecia Martel, instantaneamente aquele livro deveria ser um filme mas a sua adaptação deixou de parte muitos elementos que não considerou importantes para a sua narrativa, nomeadamente os sonhos alucinatórios de Don Diego. As decisões tomadas pela realizadora não retiram do filme essa aura onírica que não é bem um sonho antes um adormecimento, aquele momento bem antes de alguém adormecer em que já se têm alguns sonhos mas a realidade ainda está presente, os dois mundos se fundindo sem distinção.

uma reflexão poderosíssima sobre o modo como as populações endógenas são tratadas como exógenas quando fazem parte das raízes de um determinado território (…)

A obra de Benedetto é também ficcionada, apesar de os personagens estarem enquadrados no Paraguai do século XVIII, por isso a projecção histórica é fruto da imaginação do escritor e nada tem de próximo com a realidade histórica. No livro como no filme, a história apenas interessa do ponto de vista da construção da identidade de um país e é sobre isso que Lucrecia reflecte, tal como, em parte, admitiu na conversa com os espectadores após o filme, referindo que, entre outras coisas, o seu “Zama” era uma tentativa de mostrar a oportunidade perdida pelos antepassados colonizadores de conhecer novas culturas, nomeadamente os povos indígenas que foram escravizados e ostracizados, enviados para as margens do país e dos quais nem as suas línguas já se compreende. Esse passado indígena é uma das grandes presenças no filme de Lucrecia mas movimenta-se praticamente sempre nas sombras, quer na pele do povo cegado pelos colonizadores que agora apenas vive de noite, quer na pele das mulheres indígenas que Don Diego tanto aprecia. Essa intensa aproximação do funcionário da coroa daqueles mulheres parece, contudo, representar não um amor profundo mas uma fatalidade de identificação na marginalidade. Zama encontra-se constantemente junto às margens, olhando o horizonte, atraído pela água que tanto o pode levar para longe daquele local onde já não quer permanecer mas que também o prende ali enquanto os seus superiores não o enviam para junto da família em Buenos Aires. Aliás, o fruto do seu envolvimento com uma das mulheres do povo indígena que vive na praia é também enjeitado e fonte de sofrimento, como tantos outros acontecimentos.

Don Diego é um herói pícaro perfeitamente sem ser sequer herói, é o portador da verdade mas igualmente sofredor por ser portador da verdade que ninguém tem interesse em ouvir, é uma sociedade longe das suas raízes que anseia por cocos preciosos que não são em essência preciosos, apenas aparentam. Pela verdade, Zama é empurrado cada vez mais para o seu real papel, apesar de, tal como os peixes, tanto lutar para se integrar naquela pequena amostra de sociedade, menor mas representante da coroa espanhola em território estranho. O território estranho é estranho em termos físicos e, para Zama, em termos de integração de grupo e, por isso, é apenas também ele um dos indígenas, com eles se sentirá integrado e junto deles é tratado como um igual. Don Diego é, na maior parte do tempo, uma personagem de quem toda a gente faz troça, um Dom Quixote que luta contra os moinhos de vento, pugnando pela integridade e mesmo ingenuidade e inocências que não fazem parte deste tempo. Zama é um funcionário menor da coroa espanhola tratado como marginal dentro da marginalidade, tem espada mas não usa, às vezes nem sabe dela, retiram-lha, parece de brincar. Cada vez mais longe do seu objectivo, alucina entre os fantasmas de mulheres nobres e as escravas que não existem ou são libertas com a voz presa na garganta.

A viagem pelas terras selvagens dos indígenas representa a grande viagem pícara de Zama e pode-se questionar se realmente terá acontecido, dado que na maior parte do tempo os próprios personagens não dão crédito aos acontecimentos. Nesta viagem, Don Diego assume completamente a personagem que sempre lhe coube mas que havia rechaçado, perseguindo um conhecido criminoso que ninguém sabia muito bem se ainda existia, já tinha morrido muitas mortes, havia quem tivesse troféus com partes do seu corpo, mas Zama embarcará nesta viagem sem nome em busca de um homem que não sabe se existe como modo de alcançar glórias e, assim, também o regresso a casa. O flime não responde a essa pergunta, assim como não responde a outras, essas respostas talvez nem interessem ou intereressarão de maneira diferente a cada um dos que assistem a “Zama”. No filme de Lucrecia Martel, uma obra que demorou o seu tempo a tomar forma, depois da ideia da adaptação de um outro livro, passado no futuro, não ter acontecido, a cronologia não tem importância também, Don Diego e os valores que aquele representa não têm tempo, existem sempre neste tipo de homens que se refugiam nas margens. São as margens da Argentina com olhar para o horizonte, por entre as mulheres que já ali habitavam antes da chegada dos homens e mulheres brancos, a que Lucrecia concedeu lugar de destaque para possivelmente mostrar como se perdeu a ligação entre as culturas naquela época e no presente. “Zama” podia passar-se agora e a mensagem seria a mesma, mudavam os cenários, é apenas um modo de projecção de ideias, tal como são as novelas ou os filmes passados no futuro. Existem tantos elementos passíveis de admiração em “Zama” e no modo como Lucrecia Martel desenhou e chegou a concretizar este filme que é possível que daqui e de outras visões nascessem livros e teses. A própria realizadora dá particular importância, quando fala sobre o filme, a essa ponte entre as pessoas, entre as culturas, que se quebrou, a tal oportunidade perdida e que se continua hoje na sociedade argentina a perder. “Zama” é uma reflexão poderosíssima sobre isso e sobre o modo como as populações endógenas são tratadas como exógenas quando fazem parte das raízes de um determinado território, demonizadas, empurradas para fora, fantasmas nas suas próprias casas, branqueadas como no caso do mensageiro que usa peruca e fato mas anda em cuecas, também ele estrangeiro, a meio caminho entre uma coisa e outra, não se identificando com nenhuma e, por isso, caricatura híbrido que resulta dessa tentativa de apagar a identidade dos que não são iguais em aparência. Don Diego é branco, colonizador, mas é também um fantasma, deslocalizado do sua família, sonha com a finesse europeia mas é gozado por ela, em busca do regresso que não lhe concedem, persegue os moinhos que lhe calham em sorte, não é diferente dos indígenas cegos que se movem apenas de noite, ele que se torna indígena na forma quando põe os pés em territórios que não são pertença da coroa. Duplamente rejeitado, dentro de si dois peixes cujo movimento perpétuo anula todos os esforços, formando um círculo em que, afinal, não há saída a não ser através, derradeiramente, das palavras que os outros não querem ouvir.



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