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“Porto das Almas” de Lars Kepler

Linha Mortal

Por muito que associemos alguns autores a obras de um determinado género e elementos de coerência de conteúdo, e qualidade, por vezes, alguns desvios ao habitual percurso podem colocar os mais céticos em alerta.

É por isso que Porto das Almas (Porto Editora, 2017), a mais recente aventura literária da dupla luso-sueca Lars Kepler, deixou muitas reticências aos fãs dos autores de O Hipnotista ou O Homem da Areia ou Stalker, obras que têm em comum o inspetor Joona Linna, um dos mais marcantes personagens do universo policial/thriller das últimas décadas.

Porquê? Por que Porto das Almas, – primeiro tomo de uma série apelidada por Playground – , não tem Linna e, essencialmente, se move no reino do sobrenatural, numa espécie de vácuo temporal entre a vida e a morte, um limbo desesperado e desesperante, que lembra os meandros mais obscuros da China, que assola quem o visita.

No centro da narrativa está Jasmin Pascal-Andresson, uma ex-mulher soldado do exército sueco, que sobreviveu ao pesadelo que foi a guerra no Kosovo e agora vive em exclusivo para Dante, fruto da sua (estranha) relação com Mark, um antigo colega de armas e um homem instável que tenta afogar os horrores da guerra em álcool e drogas.

Depois de uma experiência traumática que resultou na perda de alguns dos seus camaradas, Jasmin está agora atrás de uma secretária mas continua sobressaltada com um passado que a fez viver uma terrível experiência pois foi ferida no teatro de guerra, ficando num estado muito grave. E enquanto se encontra entre a vida e a morte, a sua alma parte para uma misteriosa e sobrelotada cidade portuária de onde os que morrem não regressam, destino que Jamim ousou desafiar.

Cerca de dois anos depois da primeira incursão na “cidade dos mortos”, Jasmin tem um acidente rodoviário na companhia da mãe e do filho e acaba por lá regressar e entrar num jogo, que se pode pagar com a vida, e pode ser a chave da salvação de Dante,  que está a meio de uma operação ao coração.

Porto das Almas

Utilizando um registo narrativo centrado numa ação em duas dimensões, a dupla Lars Kepler coloca Jasmin num duplo e sobrenatural desafio que a leva a uma encruzilhada desesperada entre um plano real, a vida, e um pesadelo em formato de “purgatório oriental”. Através de capítulos curtos, repletos de ação, o leitor é confrontado com a angústia da ex-militar sueca mas também lhe é permitido refletir sobre dogmas, com ou sem aspas, como a vida, o seu real valor, e o que acontece depois dessa experiência.

Ainda que bem escrito (sem ser brilhante) Porto das Almas é, assumidamente, entretenimento puro, em versão quase cinematográfica com apontamentos intemporais, surreais e apocalíticos (a fazer lembrar Maze Runner ou Anger Games) onde o “personagem” mais interessante acaba por ser a própria cidade portuária, um espaço cuja atmosfera escura, suja e decadente, que se merecedora de uma outra atenção talvez conferiria um outro brilho ao próprio livro.

Ainda que a sua leitura inicial seja um pouco como caminhar num território desconhecido em que, tendencialmente, suspeitamos que o apelido Linna surja como por encantamento, à medida que as páginas avançam a curiosidade aumenta e a vontade de saber o que vai acontecer a seguir toma conta de nós.

Para isso muito contribui a presença dos personagens e aliados de Jasmin, principalmente nos casos de Ting, o casal Pedro e Marta e Grossman, “equipa” que tem a dura tarefa de defrontar o corrupto gangue de Wu Gang no Recreio, uma espécie de batalha final onde a justiça será reposta pela força e as poucas regras que existem são meras teorias.

Puro exercício de suspense e fantasia, Porto das Almas é o (ousado) primeiro passo de uma trilogia cujo próximo tomo pode tornar-se no paraíso ou inferno.



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