“Les Garçons Sauvages”, de Bertrand Mandico|IndieLisboa 2018
Lynch meets Buñuel? Magnífica viagem de cinema onírico.
A frequência com que um espectador fica sem reacção quando acaba de ver um filme é relativamente rara. Não é todos os dias que nem se consegue digerir todas as referências visuais ou sonhos transformados em filme , ao ponto de ser necessário permanecer na sala mais um pouco para recobrar as forças e voltar à realidade, beslicar uma parte do corpo, esfregar os olhos.
uma admirável obra surrealista que não conhece limites para os seus sonhos
“Les Garçons Sauvages”, de Bertrand Mandico, é um desses casos em que não se sabe bem o que se acabou de assistir mas tem-se aquela sensação estranha no estômago que é um misto de admiração e nojo. No Indie deste ano, a sala do Cinema Ideal não estava completamente repleta na segunda sessão de visionamento e aconteceu ainda perder alguns dos seus espectadores ao longo do filme, o que é compreensível e admissível. A sinopse e o trailer não desvendam nem metade daquilo que se pode esperar desta magnífica viagem de cinema onírico e ainda bem, a surpresa que daí resulta pode acontecer transformar a realidade em volúveis tiras de imagens sem sentido. Durante quase duas horas, a longa-metragem do realizador francês que viajou da animação/stop motion para a ficção com humanos não deixa de estar em contacto com esse mundo animado que lhe é familiar. Não conhece aqui qualquer fronteira nem responde às tradicionais noções de cinema ou de género, não consegue encaixar-se em definições concretas e, por isso, é possivelmente um misto de universo Lynchiano com as primeiras experiências de efeitos especiais levadas a cabo no cinema, caminhando ainda pela magia do preto e branco dos cineastas russos, definido e que esculpe tão lugubremente os corpos dos intervenientes ou entrando tresloucadamente em alucinações cromáticas tão aberrantes quanto kitsch, em referências quase directas à obra de Buñuel. Tudo se mistura sem limitações, Bertrand Mandico não tem receio nem de chocar nem de pegar em tudo o que aparentemente não se pode misturar e construir um filme com que Freud muito se entusiasmaria. Acima de tudo, é notório que o realizador não cria um monstro simplesmente para retirar reacções do público mas para verdadeiramente pensar sobre todas a noções que estão com tanta clareza pré-definidas.
É um filme que explora o corpo de uma maneira surpreendente mas ao mesmo tempo cheia de curiosidade e naturalidade, discorrendo sobre o que significam as formas que todos habitam, se é que significam alguma coisa. Discorrendo sobre o corpo masculino e feminino, transpõe para uma espécie de ilha dos amores mesclada com a viagem de Júlio Verne nos “Dois Anos de Férias” ou uma parte da mágoa do Dr. Moreau (personificada em Séverine/Séverin) um conjunto de imagens sobre o poder do corpo e sobre os impulsos sexuais, roçando a antropofagia metafórica em que os corpos não são devorados mas provocados, como que nunca pisando a fronteira da imaginação e das fantasias. As noções de pai e mãe primordiais, o poder dos impulsos, a atracção da morte e as pulsões de violência são uma constante e os papéis não são tão claros como se esperaria, não existem homens e mulheres e existem homens e mulheres tal como fisicamente são conhecidos. Os rapazes selvagens não têm aparência de rapazes e os homens que parecem homens nem sempre o são totalmente, por vezes surgem híbridos.
não tem receio nem de chocar nem de pegar em tudo o que aparentemente não se pode misturar e construir um filme com que Freud muito se entusiasmaria
Tudo em “Les Garçons Sauvages” fala de libertação, quer física quer ideológica mas também fisiológica, misturando nessa fórmula química o ideal aventureiro das amazonas cuja pureza é manchada pela existência de frutos cabeludos que fazem lembrar o sexo feminino ou de árvores de cujos frutos penianos jorra o líquido que mata a sede aos viajantes. É uma admirável obra surrealista que não conhece limites para os seus sonhos e não pára nessas fronteiras que tradicionalmente estão construídas para filmes que são uma ou outra coisa. “Les Garçons Sauvages” é uma longa-metragem de sonho, de viagem, de tragédia, de comédia, de drama, de terror, com uma banda-sonora igualmente onírica e orgânica, algures entre as sonoridades de “Suspiria” e as películas de sexploitation, recorrendo a temas já existentes mas sobretudo contanto com a composição de Pierre Desprats, que cria uma atmosfera claustrofóbica em que se sente tão perto o abismo quanto o prazer, uma ténue fronteira separando a asfixia violenta da excitação sexual.
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