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Keso

Keso é, hoje, um dos nomes mais enublados no panorama do hip-hop nacional, circunstância que, no seu tão particular caso, lhe granjeou uma aura mítica que poucos tiveram a sorte de beneficiar. Mas, para percebermos isto, temos que recuar um pouco no tempo

Em 2003, Keso, tripeiro de gema, assinou, sob o heterónimo de KS Xaval (nome por que, ainda hoje, é carinhosamente conhecido), e com apenas 16 anos, “Raios Te Partam”, um álbum de beats vigorosos e sem papas na língua. Era tempo de um rap combativo, sério q.b. (típico da idade) e introspectivo, mas, também, o primeiro indício do que de extraordinário viria Keso a fazer mais tarde, em “O Revólver Entre as Flores” (2011). De facto, se, do ponto de vista musical, se notava já a tendência para a experimentação e para o ecletismo («Sorte», «Sempre presente»), o mesmo se diga para a predominância do humor e do calão chavasqueiro nas letras («Homens de estilo» e, bem assim, os deliciosos skits à De La Soul em «Jabardim da Penisquita» ou «Intro»). De qualquer forma, seria por sons mais duros, como «Bairrismundo» ou «Pintor de interiores», que o nome de KS Xaval ficaria gravado na cabeça de muita gente.

Em 2009, volvidos seis anos, já com novo heterónimo, Keso anunciava a edição comercial do seu novo álbum, “O Revólver Entre as Flores” (gravado entre 2006 e 2009). Todavia, o álbum nunca chegaria a ver a luz do dia, por força do encerramento da editora responsável pelo seu lançamento, a mítica Matarroa. Os fãs desesperaram. Mas Keso não.

Foi assim que, pelo meio de muitas desventuras, lançou, ele mesmo, uma versão do álbum para download gratuito (!). Entretanto, “O Revólver Entre as Flores” viria a ser distribuído, de forma independente, por algumas lojas do Porto. Os fãs rejubilaram.

Um tesouro bem escondido

E que disco é esse, afinal?

“O Revólver Entre as Flores” é, com grande probabilidade, um dos tesouros mais bem escondidos do hip-hop português, com entrada directa, arrisco dizer, no top 10 do género. Na verdade, “O Revólver” só não é o disco perfeito devido à sua (demasiada) curta duração – quase todas as (apenas) 10 faixas têm duração inferior a 3 minutos. O que, bem vistas as coisas, significa uma autêntica revolução copernicana no modo como encaramos o conceito de “comercial” (atribuído, precisamente, aos artistas que “despacham” hits em faixas pré-fabricadas de 3 minutos). Mas o que explica, então, tanto louvor?

 

Explica-o, por um lado, a produção. Keso é um produtor de mão cheia, que faz dos samples, mais do que simples decorativos melódicos (loop sobre loop acompanhado de batida em pano de fundo), ingredientes sobrepostos na composição de um todo mais elaborado. Ainda no que respeita ao sampling, destaca-se, também, o recurso frequente a frases e diálogos retirados de filmes, o que só evidencia a dimensão cinematográfica do álbum (a primeira faixa, «Belarmino de volta ao ringue», é uma homenagem evidente a “Belarmino”, 1964, do recém-falecido Fernando Lopes, filme-ruptura do cinema português).

Por outro lado, pressente-se, em “O Revólver”, uma verdadeira mestria na composição musical, por força do arsenal de recursos de que se serve Keso, que, não se confinando aos samples, cria uma atmosfera orgânica arrojada. Ela notabiliza-se através da utilização abundante de instrumentos, nomeadamente, de teclas e cordas (os riffs de guitarra e o baixo adocicado em «Na rua tenho acústica. Puta!», por exemplo – sim, a faixa tem mesmo este nome), que, coabitam, na perfeição, com beats mais tradicionais, como aqueles que encontramos em «Acólito por alcoólico» ou «Insólito Kesone», este último com um groove de fazer inveja aos Premiers e Pete Rocks do outro lado do Atlântico. A ousadia na composição – agora rítmica – manifesta-se, igualmente, em faixas como «Oiçam», onde o portuense ensaia um breakbeat colorido, desafiando as convenções do boom bap a que estamos a associar ao hip-hop mais clássico.

Um letrista singular

Mas a frescura que Keso traz ao hip-hop português não se fica por aqui. É que, coisa rara no hip-hop, Keso não só rima como canta (e bem!) muitos dos refrões, dispensando os habituais coros das meninas da neo-soul. Para mais, o portuense afirma-se – convém dizê-lo claramente – como um belo escritor de canções, as quais primam, sobretudo, pelo humor e fina ironia (sem lugar, portanto, para aquele hip-hop de ar sério e grave que Rakim imortalizou em «I ain’t no joke»), capazes de oscilar entre a reflexão mais profunda («Eternamente em cena») e a punchline mais javarda (“Fuck you / enfie a multa no rego do ass / Preocupe-se com pinguins e ursos quando o habitat deles derrete”), como se ouve em «O fumo que eu fumava»). Mesmo quando aborda tema sérios, o rapper fá-lo de modo subtil, com frio cinismo – em «O fumo que eu fumava» (clássico), Keso, com olhar sociológico aguçado, expõe ao ridículo a moderna tendência política para regular os mais pessoais gestos do quotidiano, como… fumar (“E quem diria que o fumo que eu fumava / era o fumo que matava tornando-me um criminoso”). «Acólito por alcoólico», em registo autobiográfico, revela, através de um diálogo imaginado com a figura materna, o lado mais íntimo do músico, questionando o papel da fé (“o padre que no meu baptizado muda o meu nome de Ivo para Marco / com que liberdade interfere na minha vida?”) e o seu papel enquanto instrumento de alienação no interior de uma família (“Tu dizias para rezar pelo pão e agradecer ao Deus Pai a multiplicação / mas Deus Pai está no céu / e em casa havia outro nabo que só multiplicou em ti os olhos pisados”).

«Eternamente em cena», uma mais belas canções (magníficos o baixo e a guitarra e o saxofone, de fininho, no fim do refrão) que o hip-hop português já conheceu, é um retrato da condição do artista, do seu hercúleo e persistente caminho, contra tudo e contra todos, na exposição da sua obra – o sample inicial (“Olha uma coisa que eu te vou dizer / Tu aqui não tens futuro nenhum”) ecoa, de modo muito particular, num meio como o hip-hop português (que, para todos os efeitos, continua a ser um género altamente marginal, exceptuando dois ou três nomes com acesso privilegiado ao mercado), e especialmente numa época de crise como é a nossa.

 

O humor e sarcasmo de Keso, esses, vêm ao de cima, sobretudo, em faixas como «Belarmino de volta ao ringue» (que explica a ida do músico para Lisboa, onde estuda sonoplastia para Cinema), «Insólito Kesone», «Oiçam» (“Não cheguei ao top mais, só me falta arranjar os dentes / Tenho um talento inequívoco, chova o guito!”) e «Na rua tenho acústica. Puta!», onde há tempo para brincar com um hit de Boss AC (“Princeeesa, diz adeus ao Keso porque o Keso quer hip-hop à mesa!”). A isto se junta um flow imparável, que lhe permite rimar como bem lhe apetece, ora acelerando o ritmo, ora entabulando diálogos com si próprio (alternando os interlocutores em tom mais ou menos grave), ora enfiando punchlines memoráveis.

De resto, o álbum conta, ainda, com participações de luxo – Sir Scratch, DJ Kronic, DJ Kwan (Mundo Complexo), D-One, Nerve e Maze (Dealema) – e um artwork muito interessante (da autoria de Keso, que também faz graffiti). Quem o viu, há umas semanas, a recitar poesia como gente grande no Hard Club, só ficou com uma certeza maior: este é um dos mais talentosos artistas no hip-hop nacional, cujo futuro merece um acompanhamento mais de perto.

Uma nota para o futuro: a nova escola do Porto – como já lhe chamaram – está de boa saúde e recomenda-se, se pensarmos que, ao nome de Keso, se juntam, actualmente, os de Virtus, Enigma ou Minus.



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