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“Fados e Canções do Alvim”

A simplicidade de Fernando Alvim não é só evidente. É uma delícia, que transporta à delicadeza de um cavalheiro dum Portugal doutros tempos, segundo se imagina. Muito cordial, mas com meiguice.

Foi ao fim de 50 anos de carreira que lançou o seu primeiro álbum de composições, que reúne artistas como Camané, Carminho, Ana Moura, Cristina Branco, Fafá de Belém e muitos, muitos outros.

Para ver e ouvir, dia 11 de Dezembro, na Casa da Música.

“Fados e Canções do Alvim” é o seu primeiro álbum desde sempre, de composições suas. O facto de só agora, ao fim de tantos anos de carreira, ter sido composto, é reflexo de um momento especial da sua vida, virado para a introspecção?

Hum… de certo modo.  Quer dizer… eu trabalhei todo o tempo. Durante 50 anos fui acompanhador de vários artistas, de vários guitarristas, de vários cantores. Fazia as harmonias e os ritmos dos acompanhamentos, foi sempre esso o meu trabalho.

Tinha muitos espectáculos, o tempo muito ocupado sempre. Os ensaios também… naquela altura os ensaios eram  feitos em directo, não havia gravadores, não havia essas coisas…

Isto estou a falar nos anos 50/60, não havia as facilidades que há hoje com os computadores, com os emails, com os mp3, que permitem fazer a composição e depois mandar para o guitarrista, mandar para o cantor. Antigamente os ensaios eram feitos em directo e isso ocupava muito tempo e eu nunca tive assim tanto, com os espectáculos, com as idas para o estrangeiro, com as viagens… E depois a pessoa saía, estava nos hotéis e tinha que ensaiar o repertório… e também gostava de dar uma voltinha! Não tinha tempo para compor.

Portanto, essas ideias todas foram-se-me acumulando no espírito e agora, aqui há dois anos mais ou menos, fiz uma paragens nos espectáculos e resolvi começar a pensar na composição. Foi assim. E depois, a minha mulher, a Rosarinho, puxou por mim. Eu tinha pouco espólio e ela procurou nos arquivos elementos meus e começou a fazer um booklet, uma pequena biografia, e entusiasmou-me a compor para eu fazer um disco, que em princípio estava para ser de 12 números e acabou por ser de 35 (dezoito fados e dezassete canções).

Quer então dizer que não utilizou nenhuma composição antiga já feita e que estivesse à espera de ver a luz do dia?

Sim, houve duas ou três composições antigas que tinha feito nos anos 60 e que readaptei para fazer uma nova composição.

Este é um disco muito comunitário, por assim dizer, em que o Fernando trabalha com muitos músicos, desde instrumentistas a intérpretes e letristas, apesar de as composições serem todas suas. Cada fado e cada canção compostas foram pensadas em específico para cada um destes artistas com quem trabalhou?

Foram, foram. Eu fazia a composição a pensar em determinado artista; ouvia o estilo dele, tanto em disco como em concerto, e depois procurava concentrar-me e compor uma música que fosse adaptável à maneira de cantar desse artista.

E mais ou menos encaixou sempre, portanto.

Com uma ou outra excepção, mas de modo geral encaixa. As músicas foram escolhidas, foram aceites pelos artistas convidados.

Quanto tempo levou o disco a ser composto?

Foi mais ou menos um ano e meio, a parte musical. A Rosário foi sempre fazendo a parte escrita, o booklet, a selecção das fotografias, tudo. Deu um trabalhão, um trabalho imenso!

Efectivamente,  contados tantos anos de carreira, o espólio deve ser enorme.

Não… eu já tinha três ou quatro coisas guardadas e ela conseguiu arranjar em vários sítios fotografias antigas, artigos de jornal, várias coisas que serviram para fazer o booklet… O booklet é todo da responsabilidade da Rosário Worisch Alvim.

«A guitarra portuguesa encontra o Jazz» é uma das canções deste disco. Quando é que o Fernando encontrou a guitarra portuguesa?

Isso foi ainda quando eu tinha 15 ou 16 anos, na minha juventude, quando comecei a acompanhar fado. Tocava-se muito fado em casa de amigos… em vários lados tocava-se fado e eu aprendi a acompanhar e tocava com um guitarrista, que era o João Torre do Valle. Nós íamos aos fins-de-semana, normalmente havia sempre uns jantares onde cantavam amadores e nós começámos a acompanhar. E depois fui ouvir a Amália também, ao Luso, e gostei muito. Dediquei-me mesmo a acompanhar o fado. Aprendi em casas de fado, a ouvir os guitarristas, a ver, e depois também a tocar ao pé deles. Eles deixavam-me tocar ali também nas casas de fado.

Foi fundamentalmente a ouvir, fui aprendendo assim…

E como chegou depois ao Jazz e à Bossa Nova?

O jazz foi nos anos 50. Comecei a frequentar o Hot Club e lá ouvia discos que não havia cá em Portugal. O presidente do Hot Club era o Luís Vilas Boas, na altura, e ele e o Zé Eduardo, que faz os “5 minutos de jazz”, aquele programa muito antigo de rádio, da Antena 1, eles traziam discos do estrangeiro e nós reuniamo-nos à noite e íamos ouvir.  Ficávamos a ouvir… fomos aprendendo ouvindo. E depois comecei também a estudar por métodos de guitarra de Jazz.

A Bossa Nova… isso aprendi com um guitarrista brasileiro, que veio cá a Portugal e ensinou-me o ritmo de Bossa Nova. Na altura eram as coisas do João Gilberto, Tom Jobim e tal… E, depois, nós tínhamos um programa na Emissora Nacional, que era o programa Nova Onda, onde íamos tocar essas peças. Havia uma rapariga que cantava em brasileiro, que cantava muito bem. Fizemos aí imensos programas de rádio e eu nesse programa tocava vários géneros, Jazz, Bossa Nova, tínhamos também um conjunto de música ligeira, que tocava aquelas músicas do Rock ‘n’ Roll, do Elvis Presley, do Marine Marines, o italiano… e havia também a parte dos fados, que eu também acompanhava. Era multifacetado, tocava vários géneros!

Também chegou a tocar com Caetano Veloso, não foi?

Com Caetano Veloso toquei uma vez, no Teatro Monumental, na altura, numa vez que ele cá veio e que quis cantar um fado e então telefonaram-me a saber se eu podia ir acompanhá-lo. Fui eu e o Pedro Caldeira Cabral. Foi para aí nos anos 69/70.

Como se dá o seu processo de composição? Há elementos que sempre o acompanham, que fazem parte como que de um imaginário interior e que funcionam, digamos, como uma fonte de água que nunca seca?

O meu processo de composição… No fundo é baseado em harmonias que eu faço na viola e depois, dentro do campo dessas harmonias, vou construindo a melodia. Outras vezes é o contrário, vem-me uma melodia de repente à cabeça, gravo-a logo num gravadorzinho que eu tenho e depois vou desenvolvendo essa ideia, e, quando terminada, é harmonizada, faço os acordes.

Essa harmonias são de alguma forma uma imagem posta em som?

São fruto de ao longo destes  anos ter ouvido muita, muita coisa. Ficou-me na cabeça um jogo de melodias e de harmonias. Isso é uma coisa que aparece de repente, espontaneamente. A minha preocupação, sempre, é não ser igual ou parecido a outros ou a outras coisas que já estão feitas… Às vezes, a pessoa foi tão influenciada por tantos géneros de música que pode acontecer haver algumas semelhanças.

O que significa o fado para si?

Hum…. o fado representa uma melodia caracteristicamente portuguesa, inspirada não sei em quê. As origens do fado são muito controversas, há várias fontes diversificadas que falam do aparecimento do fado.

Mas o fado, para mim, é uma canção que exprime, de certo modo, os sentimentos da pessoa, o sentimento da pessoa que canta… e enfim, procura exteriorizar nos poemas qualquer mensagem. Penso que é mais ou menos isso…

Havia muita boémia à volta do fado doutros tempos?

Havia. Sempre houve. A vivência do fado, que, inicialmente era um fado de cariz mais amador, fazia-se nas tascas, nas tabernas primitivas que havia, em que as pessoas se reuniam, cantavam, bebiam, petiscavam, conviviam.

Depois fazia-se também nos quintais, havia tabernas, como aqui perto da minha casa, que tinham na parte de trás um grande quintal, e então, aos Sábados e Domingos,  um grupo de guitarristas e de cantores reuniam-se aí e começavam a cantar ao meio-dia e acabavam à meia-noite! Havia sempre novos cantores.

Chegou a lá estar o Alfredo Marceneiro… Nessa altura o fado não tinha assim muito boa fama, era um ambiente muito especial o ambiente do fado… Isso depois, como o tempo, essa má impressão, veio-se desvanecendo. Hoje em dia está uma canção absolutamente digna… E Deus queira que ganhe, que vá a património, que era muito bom para nós todos, não só fadistas e guitarristas mas para o país todo!

E Lisboa, será sempre a musa do fado (de Lisboa)?

Sim, Lisboa foi onde as origens do fado surgiram mais espontaneamente, onde se desenvolveram mais…

Acha que Lisboa ainda tem essa mística?

Eu acho que sim. Tem. Acho que o fado tradicional nasceu muito aqui em Lisboa, nas tasquinhas, que se transformaram depois em pequenas casas de fado. Nessa altura havia grande afluência às casas de fado…

O fado parece ter voltado, ainda que de alguma maneira reinventado, a esta nova geração de músicos portugueses. Que lhe parecem e porque crê que se deu tal revivalismo?

Eu acho que o fado teve altos e baixos ao longo do seu percurso e agora está a atravessar um momento bom, em que há muita malta, muita gente nova interessada, e há muitos rapazes e raparigas a cantar muito bem, assim como guitarristas, que hoje em dia, a maior parte deles, já tem uma formação musical, o que lhes dá mais amplitudes, mais campo para harmonizarem mais modernamente os fados e as canções.

E gosta?

Gosto, gosto dessa nova abordagem. Fazem arranjos muito bonitos dos fados.

Como conheceu Carlos Paredes, com quem trabalhou 25 anos?

Conheci-o porque ele me telefonou a perguntar-me se eu não me importava de fazer um documentário sobre filigrana. Ou seja, acompanhar a música de fundo para um documentário sobre filigrana. E eu achei interessante a ideia e aceitei. Fiz a música de fundo para esse documentário e a partir daí comecei a tocar com ele.

Comecei primeiro a ensaiar, dois anos praticamente de ensaios intensos e contínuos, e, depois, vieram as gravações e os passeios pelo mundo!

Como era a vossa sintonia?

Ele tinha um género de tocar muito especial, que na altura era muito novo, era um género diferente, que me entusiasmou precisamente por ser diferente daquilo que eu estava habituado a fazer com outros guitarristas. Era uma inovação e comecei a procurar apreender o estilo dele e a maneira de tocar de modo a poder acompanhá-lo, tanto ritmica como harmonicamente. Foi muito trabalhinho!

Durante a sua vida, trabalhou nalguma outra coisa ou dedicou-se exclusivamente à música?

Nos anos 70 resolvi, a certa altura, arranjar um emprego porque achei que a carreira de músico não era assim muito segura. Era difícil porque não havia assim muito mercado e então empreguei-me na que é hoje a Petrogal. Trabalhei lá 26 anos.

E isto não colidia com o seu trabalho de artista?

Colidia às vezes. Mas quando eu tinha que sair para o estrangeiro normalmente era resultado de pedidos que faziam lá para a companhia, para me deixarem sair. Eram requisições, normalmente eram os ministérios de várias entidades que pediam se me deixavam sair. E lá no emprego, normalmente, como era uma empresa do Estado, permitiam que eu saísse.

Para além de uma vida intensa de palcos, essa intensidade foi certamente vivida muito para além dele, com os artistas com quem trabalhou. Que poderia contar acerca dessa extensão à sua vida propriamente dita?

Além do Carlos Paredes, com quem tinha uma relação muito cordial, acompanhei imensos guitarristas com quem mantive sempre laços de cordialidade. Por exemplo como o João Torre do Valle, o Pedro Caldeira Cabral, com que também gravei um disco e fiz várias viagens, o António Chainho, com quem toquei ultimamente, aproximadamente vinte anos, e gravei também várias coisas com ele, e fiz muitas viagens também, para o Japão, Macau… enfim, para todo o lado… eu viajei com todos os guitarristas.

Mas isto, a gente trabalha com os artistas, e tudo muito bem no trabalho, mas depois, além do trabalho, não… Eu sempre procurei uma certa independência em relação às pessoas com quem trabalhava. No trabalho tudo muito bem, mas depois… de vez em quando um copo ou um almoço ou um jantar, tudo bem, mas procurei não dar muita confiança.

Isso é de alguma forma reflexo do facto de, com tantos anos de carreira, nunca ter sido propriamente mediático?

Eu também nunca procurei isso, e também não me puxaram. Hoje em dia reconheço que talvez não tenham dado apreço ao trabalho que realizei durante esses anos todos. Se lhe disser que foi aqui há coisa de um mês que eu dei a primeira entrevista para a televisão… isso diz tudo. Mas isto é uma coisa que vem desde sempre. Os acompanhadores de um modo geral ficam sempre num plano muito secundário em relação aos solistas, seja cantores seja guitarristas. Eles têm um outro protagonismo e o valor que o acompanhador tem, por exemplo no caso da viola, que faz a parte rítmica e harmónica, que é importantíssima, as pessoas não dão bem valor a isso…

Acha que isso está relacionado com o facto de as pessoas não terem exactamente uma educação musical?

Não sei… isso é um fenómeno que eu realmente gostava de saber explicar… Também pode ser falta de conhecimento musical. Mas isso também depende muito dos próprios solistas que trabalhem com os seus acompanhadores, eles também tinham obrigação, por vezes, de fazer realçar o trabalho dos seus acompanhadores, acho eu, não sei…

Ao longo da sua carreira sentiu falta desse protagonismo?

Senti. Senti. Com Carlos Paredes gravei cinco discos, e qualquer palavra de apoio, ou de estímulo, ou de apreço pelo meu trabalho, nunca foi falada, nunca foi dito nada. Só na última edição dos “Verdes Anos” é que o Zé Niza, que faleceu há uns meses, escreveu um artigo sobre o papel do meu trabalho como acompanhador do Carlos Paredes… e realçou a importância desse trabalho, está a ver?

Mas sempre encarei isso com certo desportivismo… Eu soube pelo Rui Veloso que eu era conhecido, na gíria do fado e no mundo artístico, como “O Sombra”. Eu gostava que os meus colegas guitarristas e violistas começassem a ter mais protagonismo, a serem mais valorizados, porque sem eles não havia fado.

Se fosse hoje, se ainda estivesse com Carlos Paredes, acha que teria tido uma postura diferente?

Hoje em dia com certeza que teria. Teria de certeza. Há muitos guitarristas antigos que foram muito bons e que nunca foram devidamente valorizados. Mas enfim, isso foi um problema da época… Mas os tempos mudam e pode ser que esta nova geração seja mais bem sucedida.

Foi no carro, no retorno de uma viagem feita a Grândola para um espectáculo, onde estavam Fernando Alvim, Carlos Paredes e Zeca Afonso que este último começou a compor «Grândola Vila Morena», exactamente 10 anos antes do 25 de Abril de 1974. Como foi para si, 10 anos depois, ouvir esta música no momento em que ela mesma dava a machadada ao início de um acontecimento como a revolução?

Isso foi o Zeca, no regresso, para não adormecer, que começou a assobiar. Assobiou primeiro, e depois cantou… Pois, achei surpreendente… Eu até já não me lembrava bem, porque isso foi em 1964 e a revolução foi em 74, portanto, dez anos depois… Só depois é que vim a reconhecer aquela melodia…

Havia entre vocês, músicos, nessa altura, a consciência da presença da ditadura, pensando no facto de o Fernando ter convivido, por exemplo, com Zeca Afonso, um cantor de intervenção?

Sentia-se, sentia-se bastante. Havia sempre aquela tensão própria de quem estava ao pé a ouvir as conversas… Mas eu felizmente nunca tive problemas nenhuns com isso… A mim interessava-me fundamentalmente a música, era mais pela música do que pela política. Nunca me dediquei a política, gostava era de fazer o meu trabalho enquanto músico.

Há uma música neste disco, «Fim de Tarde a Sonhar», que foi escrita pela Rosário, sua mulher, interpretada por Cristina Branco, e que denota um especial cariz romântico. A Rosário foi sempre um grande alicerce no que toca à sua vida artística?

Foi sim senhora, foi sim senhora! A partir da altura em que eu a conheci, passou a ser, passou a ser um alicerce fundamental na minha vida artística. Sempre me deu um apoio enorme, e este disco deve-se a ela!

Fotografia por Rita Carmo.



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