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João Mascarenhas

O Menino Triste – A Essência.

Quantos de nós já se questionaram sobre o que é a arte? E qual a sua essência? O que faz uma obra ser arte? É o seu criador? As pessoas que a admiram como tal? Ou ambas? Esta é sem dúvida uma discussão que costuma resultar em muitas mais questões do que em respostas e, por isso, o “Menino Triste” decide aceitar o conselho dos seus amigos e partir numa viagem, em busca de inspiração e da tão desejada essência da arte. O destino escolhido é, nada mais, nada menos, do que a bela cidade de Veneza, precisamente na altura em que decorre o carnaval Veneziano.

A viajem pelas suas ruas é riquíssima, não só no traço incrivelmente detalhado da cidade, como também nas múltiplas referências artísticas que vamos absorvendo ao longo da narrativa. São vários os momentos em que se respira Shakespeare, Wagner, Mozart, Pratt ou Da Vinci, entre outros.

Com a publicação de apenas dois fanzines este é não só o primeiro livro do “Menino Triste” como também o primeiro livro a ser editado pela “Qual Albatroz”. Foi lançado no último Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora e é na minha opinião um dos melhores livros de BD editados por cá no ano passado.

Trata-se de uma viagem espiritual em busca da verdadeira essência da arte, quando a resposta esteve sempre dentro de nós.

A Rua de Baixo teve o prazer de estar à conversa com o seu autor, o muito simpático João Mascarenhas.

RDB: Como nasceu o “Menino Triste”?

João Mascarenhas (JM): O “Menino Triste” nasce exactamente de uma data de reflexões que fui fazendo ao longo dos tempos e que através de conversas com amigos surgiu a hipótese de as transformar em algo mais. Sendo eu também um grande fã da banda desenhada, é normal que automaticamente as coisas se tenham proporcionado nessa área, e trouxe assim esse mundo de reflexões sobre a vida. Sobretudo, para a banda desenhada através dessa personagem. Por outro lado, tentei pôr o máximo possível de algo autobiográfico. Por exemplo, no último álbum, a personagem começa a estudar em Coimbra, tal como eu também estudei, e todas aquelas vivências e experiências que ele teve eu também as vivi.

RDB: É curioso porque ia afirmar precisamente que esta história, apesar de ficcional, tem um sabor autobiográfico e perguntar-te se tu és na verdade o “Menino Triste”?

JM: Sim, sim. Aliás, o nome pode ter várias origens. A primeira está mais relacionada com o primeiro fanzine, que tem a ver com o efeito Peter Pan, ou seja, ele não se queria tornar adulto e eu sou um bocado assim também. Nunca achei que era tempo para fazer determinadas coisas e adiei sempre muitas decisões. Sempre considerei o Peter Pan um “Menino Triste” e através da leitura de algumas teorias da psicologia sobre isso, achei que era engraçado colocar esse nome no personagem. E é evidente que eu também me considero um “Menino Triste”.

RDB: Sim, até costumas dizer que neste contexto a palavra “triste” não tem de se referir necessariamente a tristeza ou infelicidade.

JM: Exacto. Numa abordagem mais recente, interpõe-se que normalmente um ciclo criativo muitas das vezes está relacionado a alguma tristeza do autor, mas a tristeza não significa propriamente depressão, significa sim uma aproximação de si próprio. Quando estamos mais tristes ou temos uma contrariedade, efectivamente aproximamo-nos mais de nós e conseguimos reflectir de outra forma e isso muitas vezes dá azo à criatividade. Então, assim sendo, é algo que considero muito positivo e é natural no ser humano, tal como é a noite e o dia, a vida e a morte, e a tristeza também é tão natural como a felicidade.

RDB: Gostei muito da tua descrição de Coimbra e de Veneza. Uma vez que estudaste em Coimbra é normal que conheças bem a cidade, como foi o processo para desenhar Veneza?

JM: Visitei Veneza há uns tempos atrás e, tendo já esta questão em carteira, sobretudo ao nível da arte fiz alguma repérage e depois pela influência que tive dos álbuns do Pratt através do “Corto Maltese”, que aparece também na história exactamente em Veneza. Achei que era um lugar ideal. Através das investigações que fiz, onde estive cerca de três anos a ler textos de óperas e teatro e textos onde se falava sobre Veneza, arte ou a própria maçonaria Veneziana, constatei que estes dedicavam muita coisa e davam muitas pistas sobre os grandes criadores ao nível da história da arte que ao longo dos séculos passaram por Veneza. A grande parte dos artistas, podemos dizer assim, da história da humanidade, ou viveram ou passaram por Veneza e então achei por bem colocar exactamente nessa cidade o segredo da essência da arte.

RDB: Ainda sobre os artistas, este livro está de facto inundado de referências, desde Shakeaspeare a Pratt. Falaste há pouco do “Corto Maltese”. Gostei muito dessa cena onde o reconhecemos a partir da sua silhueta. Fala-nos um pouco deste processo criativo e da pesquisa que envolveu.

JM: Sim, temos desde o “Pensador” de Rodin, pois as referências não têm de estar na 1º pessoa. São algo que nos pode fazer lembrar determinada situação, e quando aparece o arquitecto do faraó que está triste por terem destruído completamente a cidade, achei que era o momento ideal para usar uma referência à escultura e, portanto, ele aparece precisamente na mesma pose do “Pensador” de Rodin.

Essas referências são algo que eu sempre gostei de colocar. É evidente que muitas delas são simplesmente ao nível do texto. Lembro-me que no início, no primeiro fanzine, há lá uma parte em que uso uma frase que adorei do “Envagelho Segundo Jesus Cristo” do Saramago, sobre o acto sexual quando se refere à relação entre Jesus e Maria Madalena onde Jesus lhe diz algo como “O seu anel de fogo envolveu-me…” e eu achei que era indicada para aquela altura. E algumas outras coisas estão despercebidas, não têm de ser necessariamente evidentes.

RDB: Claro, até porque o processo de descoberta é um dos processos mais engraçados durante a leitura.

JM: Exactamente. Faço sempre isso independentemente da história em si, mas também a nível gráfico, pois as pessoas podem ler simplesmente a história mas se depois quiserem dar uma segunda vista de olhos ao nível do desenho podem sempre vir a descobrir e explorar essas referências.

RDB: Já agora, estou curioso por te perguntar se aquele senhor que cita o “Mercador de Veneza” e acompanha o “Menino Triste” é o Manoel de Oliveira?

JM: (risos) É inspirado no Manoel de Oliveira. É um cineasta que ganhou um Leão de Ouro tal como ele, tem uma presença assídua em Veneza e efectivamente pode ser o Manoel de Oliveira, mas não tem de o ser. Foi nele que me inspirei quer em termos gráficos quer em termos fisionómicos, e na própria situação, pois ele queixa-se de não ter um acolhimento no seu país como tem em Veneza, o que é de certa forma verdade. Portanto, achei engraçado colocar esse tipo de referência embora sem nomear necessariamente o Manoel de Oliveira.

RDB: O Prefácio é da autoria de José Luís Peixoto, que é também, à sua maneira, um “Menino Triste”. Como surgiu essa ideia?

JM: Foi através da editora. Tinha pensado em uns quantos nomes e quando a editora sugeriu o José Luís Peixoto aceitei de imediato, porque acho exactamente que ele tem muito a ver com o “Menino Triste” e acho que é um autor de qualidade e o trabalho só teria a beneficiar com a qualidade do seu texto.

RDB: Na parte de trás da capa tens várias citações referentes à obra. A minha predilecta é o grafitti na parede da estação de comboios de Alfornelos que diz “Menino Triste Para Presidente!!!”. Foste tu que descobriste esse muro?

JM: (risos) Não, não fui eu, foi alguém que me disse que ele existia e por acaso já fomos à procura e realmente há lá uma zona que está apagada, provavelmente já não existe por esta altura, mas conseguimos encontrar vestígios.

RDB: E qual a sensação de constatar que chegaste às pessoas?

JM: É engraçado porque, repara, isto acontece numa altura em que ainda não tinha saído o novo livro, portanto ainda tem a ver com os fanzines, algo ainda um bocado underground. É pena, que o grafitti que por si só é algo que pode danificar, mas por outro é uma forma de arte que quando bem aplicada, não a nível do vandalismo, pode ser importante. O Keith Harring começou exactamente com uma espécie de grafitti e coisas do género, chegou a ser preso, mas a sua arte no fim foi reconhecida.

RDB: Podes falar um pouco sobre os teus artistas predilectos de BD?

JM: Gosto muito de Bilal. Quando trabalho a cores, tenho muitas influências dele e inclusivamente há uns anos atrás estive em Paris, numa altura que tinha saído o primeiro álbum da tetralogia do “Monstro”, e tive hipótese de assistir a um workshop onde mostrava como pintava e adorei. Sinceramente, achei que aquela era a forma que eu queria para pintar os meus desenhos.

Depois gosto também imenso do trabalho do Hergé, enquanto “Tintim”, não necessariamente da história em si, mas sobretudo pelo que é tratado por detrás das coisas, porque se investigarmos o que está por trás da criatividade (de Hergé), é algo de espectacular.

Também tenho tido algumas influências ao nível da Manga. Aí é de uma forma geral, não há nenhum autor específico.

RDB: A edição do livro está cinco estrelas. Como foi trabalhar com a Qual Albatroz, uma editora tão nova no meio?

JM: Foi espectacular! Foram eles que me abordaram para editar o livro e logo aí começa por ser algo fascinante, ser a editora a vir ter contigo e dizer-te isso. Por outro lado, a Qual Albatroz está muito preocupada em ter edições de qualidade, não apenas ao nível do conteúdo mas também ao nível da edição, ou seja, o livro enquanto objecto ser algo agradável para o leitor. Repara que esta capa foi muito pensada para que as pessoas possam, além da leitura, ter também o aspecto do tacto para ser algo perfeitamente agradável ao toque. E é engraçado que muitas das vezes as pessoas pegam no livro e ficam a tocá-lo de uma forma mais “íntima”.

RDB: O “Menino Triste” vai continuar as suas aventuras ou não?

JM: Vai, embora não para já. De momento tenho entre mãos um outro trabalho sobre a 1ª Guerra Mundial, sobre duas crianças-soldados. Mas, curiosamente, ontem tive uma ideia nova para o “Menino Triste”. Como te disse, esta história tem algum conteúdo autobiográfico e com aquela imagem do Punk a tocar guitarra que eu ontem desenhei e está no blog, automaticamente desencadeei um processo criativo onde comecei a pensar na parte geral da história, porque eu em 76 estava em Londres, exactamente quando o movimento punk estava a surgir, e então tive contacto directo com punks, concertos, lojas de King´s Road e uma data de coisas. A minha paixão pela King´s Road em Londres vem dessa altura, porque tudo o que estava a acontecer estava nessas lojas, em Chelsea. De forma que foi muito agradável agora acabar por conceber assim uma história praticamente em três segundos. Mas vou fazer outras histórias também com outros temas, nomeadamente alguns têm a ver com outras questões como por exemplo porque é que acreditamos em contos de fadas? Não necessariamente nos contos de fadas em si, mas no facto de nós, para além da nossa vida real, termos de ter algo de fantástico para conseguir viver, coisas deste tipo. As histórias do “Menino Triste” não têm que ver com invasões de extraterrestres ou salvar o planeta, mas com algo ligado mais ao nível íntimo do ser humano.

RDB: O ano passado estiveste no FIBDA a dar autógrafos com uma caneta cuja tinta possuía o teu ADN, o que foi uma ideia muito curiosa e inovadora.

JM: Sim, eu trabalho num laboratório de investigação científica, o INETI, e temos um departamento de biotecnologia onde se fazem alguns trabalhos ao nível de ADN. Por isso pedi à equipa para me extraírem ADN para, depois de tratado, ser misturado com a tinta da china que utilizei nos autógrafos. Isso é algo que não é inovador ao nível da arte de uma forma geral. Ao nível da pintura há quem já o tenha feito, mas em banda desenhada foi a primeira vez.

RDB: Porque é que o “Menino Triste” tem sempre aquelas três figuras geométricas à volta da cabeça?

JM: Originalmente eram quatro no primeiro fanzine e logo na capa aparecem os quatro. Um dos editores da Qual Albatroz, o José Dias, chama-lhe a “aura triádica”. Eu só me apercebi disto muito tempo depois de fazer o “Menino Triste”. Penso que tem a ver com alguma influência de Manga e com a forma gráfica de representar alguns sentimentos. Toda aquela situação do fascínio que o “Menino Triste” tem pelo mundo e pelas várias situações é representada por essa “aura triádica”.



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