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Manel Cruz @ S.Jorge

Ele não queria ser Manel Cruz…

Xilofone, serrote e bandolim. Uma profusão de guitarras, um violino e coros profundos. Uma chapa de metal, uma harmónica e dois megafones. Instrumentos e adereços que nunca chegam a deixar as suas posições. Algo que soa como um cravo e um rapaz muito magro que quase nunca se descola do banco. O Manel Cruz foi tocar ao Cinema S. Jorge, no passado dia 9 de Junho.

Não será exagero dizer que se sente no ar a electricidade da antecipação. A sala está esgotada e a varanda sobre a Avenida da Liberdade é pequena para albergar tanta gente, agora que o bom tempo parece timidamente regressar. O burburinho sobre o regresso de Manel Cruz aos palcos tinha começado há muito tempo, tinha surpreendido alguns e sossegado outros, que previam já que o músico não conseguisse estar afastado durante muito mais tempo. Manel Cruz é reconhecido por muitos como um dos grandes poetas da sua geração, um trovador capaz de cantar as ânsias de crescer e assim é recebido, uma personagem com a magreza exacerbada pelas alças da camisola e o bigode a lembrar um estivador ou um camionista debaixo dos holofotes. Atrás duma parafernália de instrumentos, esconde-se um tímido Manel, que agradece ao público levantando os seus dois polegares e abanando nervosamente a cabeça em sinal de satisfação.

As canções do projecto Foge Foge Bandido (um projecto que não passa duma “fachada”, como se lia nos cartazes) desfilam pelo palco do S. Jorge quase sem interrupções. As canções, documentadas e ilustradas pela capacidade ímpar de invenção daquela figura franzina, formam a cartografia da viagem que fazemos todos em direcção àquele “travo amargo da melancolia”, de que já se falava desde 1999. Manel Cruz está decidido a fazer com que tudo resulte, com que nada lhe escape ao controlo e por isso, mesmo quando se parte uma corda da guitarra, a música nunca abranda. O sample das gaivotas, que devia ter entrado de início, entra a meio do concerto porque estava previsto que ele se fizesse ouvir, mais cedo ou mais tarde.

Na música de Manel Cruz há um desencanto sossegado, mas nunca uma amargura ou mágoa a ensombrar os versos de cada canção. Quando olha para dentro, ele olha também para dentro de nós. Quando canta “eu queria ser alguém melhor”, espelha também a nossa própria convicção. Quando escreve “mas sinto a dor de ter de errar”, expõe-nos também as fraquezas. Manel é um homem de poucas palavras e mais canções, é um músico empenhado e que se dá à luta, fecha os olhos à dor mas não ao Mundo. Canta sobre os erros de quem ama às cegas, sobre a temporária anestesia dos sentidos e consegue fazer-nos sentir perdidos entre um hotel francófono a meio do deserto e um cabaret de terceira em Paris. É capaz de envolver o público em ambientes perturbadores, recriados a partir do que gravou em estúdio. É capaz de, por momentos, se perder na melancolia de ter chegado à idade adulta e não saber ainda qual é o caminho e de, simultaneamente, olhar para si mesmo e reconhecer uma profunda transformação, alguém em cujo corpo habita o mal.

Não é estranho portanto que o entusiasmo do público aumente também com o passar do tempo. Manel canta «Diz-me se aprovas», a «Canal zero» e emociona toda a gente com «Fechado para obras/Dans une autre vie miseráble». Solta-se com «A lenda da verdade», abranda com a «Canção do segredo» e deixa o palco depois de cantar «Quem sabe». Mas tem tempo, durante hora e meia de concerto, para oferecer ao público todas as preciosidades que não duram mais que breves segundos. Quase sempre sentado e concentrado, Manel Cruz não se liberta do jugo da perfeição, da pressão de a tentar atingir e não se liberta, não oferece também o seu corpo a quem se senta hoje do outro lado dos holofotes. Mas não é essa contenção que impede o público de se levantar e explodir na ovação que já se esperava desde o início. Há entusiasmo nestes aplausos, há uma genuína vontade de mais duas horas de concerto, há muita gente a pedir para Manel cantar a «Borboleta». É como se todos receiem que ele, como antes, não apareça tão depressa. Mas ele volta, meio emocionado, de cigarro aceso e garrafa de água na mão.

Há tempo para, não um, mas dois encores. Há tempo para Manel dizer que, como nós, gosta de fazer apenas aquilo que lhe apetece. E é por isso que vai terminar o concerto com «Ninguém é quem queria ser». É uma despedida a lembrar-nos que ainda há tempo de olhar para dentro, que o momento é aqui e agora. Despede-se, visivelmente satisfeito com o sucesso do concerto e com as três ovações que parecia não esperar. Ninguém imagina quando o voltará a ver pisar um palco mas, naqueles instantes finais, espera-se que não demore. E quem sabe, numa próxima vez, ele poderá explicar-nos o porquê das suas canções tão tristes.



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