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Veneno Cura

Amor e Activismo com a realizadora Raquel Freire.

É uma realizadora, sonhadora, e activista. Escreveu recentemente um filme que retrata o amor levado ao extremo. “O Veneno Cura” são fragmentos de cinco histórias de amor politicamente incorrecto e levado ao limite. Como activista participou em inúmeras iniciativas como o Women on Waves e os Panteras Rosa. Como argumentista e realizadora criou também “Rasganço”.

Assume-se uma lutadora do Amor e pelos direitos fundamentais das pessoas. Reside há uns anos em Lisboa, que acredita já poder chamar de casa. E foi em Lisboa que conversámos com ela.

RDB – Como foi fazer este filme?

Raquel Freire (RF) – Foi uma epopeia.

RDB – Foi muito complicado? Em quanto tempo é que filmaste o filme?

RF – Foi muito pouco tempo, cada vez há menos tempo para filmar, não é? Tinha previsto um tempo de rodagem mas depois foi sempre cortar, cortar, cortar. Isto é uma das coisas que me agrada também neste filme, este filme começou com um longo processo de escrita. O argumento já tratado e pronto a filmar, passado quatro anos de trabalho dava um filme quase de três horas, e depois o meu objectivo foi sempre chegar ao essencial. No fundo, o filme é sobre intensidade, e a intensidade às vezes não é lá em cima é cá em baixo. Portanto, o meu objectivo foi mesmo cortar, cortar tudo e ficar só com o estritamente necessário. Por isso não tenho entrada nem saída de câmara, quando entras numa cena já estás lá. E mesmo quando filmávamos, era sempre assim, começávamos pelo núcleo da cena. Vamos filmar o que é importante mesmo. Por isso também a estrutura de fragmentos.

RDB – Porquê a estrutura do filme em fragmentos?

RF – O projecto inicial era gigante, e era uma saga de três horas.

RDB – E por isso decidiste cingir-te ao que era para ti realmente importante?

RF – Decidi cortar tudo o que achei que não era importante, correndo o risco de contextualizar quase tudo. Mas a proposta é essa, é mesmo serem fragmentos. É encontrarmos fragmentos de sentimentos, de pessoas e de sobreviventes.

RDB  – Quando dizes que filmaram primeiro o mais importante quer dizer que receavas que não conseguisses filmar essa cena toda?

RF – Sempre. Fazer cinema em Portugal é muito difícil, tanto que quando um colega meu em Portugal consegue estrear um filme eu fico feliz. E agora com todas estas questões económicas, é cada vez mais difícil. Há cada vez menos dinheiro para a cultura. É um esforço absurdo conseguires terminar um projecto como uma longa-metragem, leva muito tempo e tens mesmo que conseguir não te deixares arrastar por aquilo que não é importante, e se calhar por isso é que apareceram os fragmentos. Ficar só o que para mim era urgente.

RDB  – E escreves todos os teus filmes, fazes questão disso? Sentes que filmar e realizar convém que venha dentro de ti?

RF – Sim, faço questão porque é absolutamente essencial. Porque o primeiro momento, que é quando nascem as coisas, nasce com imagens, e acho que é com imagens que isso se une.

RDB  – Li numa entrevista que desde criança que imaginas as histórias.

RF – Sim, o mais difícil é comunicá-las aos outros (risos).

RDB  – Este filme são 5 histórias de amor muito diferentes uma das outras e bastante fortes. Nele achas que está a tua noção de amor, ou o que concebes como o extremo do amor?

RF – Eu quis falar da forma como nos damos uns com os outros, e a forma como estamos uns com os outros, com as pessoas que são realmente importantes para nós; é o amor. À emoção, podemos dar muitos nomes, mas é o amor. E eu sinto que o amor é tão importante como ter comida para comer, ar para respirar, água para beber, mas nós não dizemos isso. E este filme é realmente sobre isso. Não se pode viver sem o amor, e [O Veneno Cura] é sobre amor que para muita gente sei que é comum, ou seja, são formas de amor com que qualquer pessoa se pode identificar, o amor por um filho ou por um irmão, o amor amoroso da relação com outro que é diferente de nós e por quem nos apaixonamos mas eu não queria falar do amor como aquele sentimento completamente romantizado e idealizado que nos é vendido como sendo o possível dentro das normas, o certinho. Cada vez mais somos formatados desde que nascemos. Esta é a refeição certa, isto é o amor certo, chegas aos 25, casas. Portanto, há certas coisas que parece que tu tens de fazer, mas não, não temos de fazer. Temos que viver o melhor possível, ou não, como decidirmos. Se decidirmos viver, temos que lidar com as nossas emoções, que não estão pré-formatadas. Nós é que a vamos formatando. Então este filme é sobre várias formas. Voltando às cores, há aquele amor cor-de-rosa e romântico, identificável com a televisão ou com os romances cor-de-rosa. Nem é com os romances cor-de-rosa… são os romances cor de rosa destes dias que são as telenovelas e as produções cinematográficas. Mas sim um amor de quando somos rejeitados, um amor de quando perdemos alguém, ou de quando alguma coisa corre mal. Também é um amor que tu conheces, que às vezes tem umas cores estranhas.

RDB – Quando fazes um filme, o que é que esperas provocar nas pessoas? A maior parte das pessoas vão provavelmente considerar que o amor retratado no filme é um amor politicamente incorrecto e obsessivo.

RF – Eu acho que não, acho que de perto ninguém é normal, como diz o Caetano Veloso. Nós é que nós não nos expomos muito. Eu acho que toda a gente na vida já lá esteve muito perto. São personagens à beira dum abismo, e toda a gente já lá esteve, por uma razão ou por outra. Viver é também pôr-nos à beira do abismo, é também sabermos pôr-nos à berma do abismo. A minha intenção é comunicar com as pessoas, tentar comunicar aquilo que estou a sentir.

RDB – O Porto é retratado neste filme, é uma cidade muito importante para ti?

RF – Eu nasci no Porto e quando imagino uma cena, imagino-a também com a luz, com o som. Portanto imaginei-o no Porto. São histórias de amor, e o meu crescimento enquanto jovem e enquanto adulta passou muito pelo Porto. Cheguei ontem de lá, volto lá sempre, é onde tenho a minha família. Então tem para mim muito a cor das emoções… agora consegui fazer o meu primeiro filme que se passa em Lisboa, o que quer dizer que já me sinto em casa em Lisboa.

RDB  – Não és só idealista em relação ao Amor, és em relação a várias coisas, participas em vários movimentos sociais, entre outras coisas. Quando fizeste este filme foi para tentar abrir os olhos em relação ao amor ou é só uma parte de ti e mais nada?

RF – Se eu imagino histórias, personagens, filmes, é porque o mundo como existe não me completa, não me satisfaz. Portanto, crio mundos, crio outras realidades, outros mundos paralelos, e por isso sim, claro que quero mudar. Há muitas coisas que estão mal que eu quero mudar. E muitas vezes, acusam-me dos meus filmes serem violentos. Eu acho que comparados com a vida, os meus filmes não são nada violentos. A vida é muito mais violenta, só que há muitas coisas que não queremos olhar, que não queremos ver. E neste filme tenho muitas situações onde queremos olhar e ver. Em que eu quero que as pessoas vejam, há uma cena que está toda a vermelho, é uma cena de rejeição. E quando passou em S. Paulo as pessoas estavam muito chocadas com aquilo e depois no final comentavam, aquilo é o Bergman em thrash. (risos) Porque o Bergman, por exemplo, era também um cineasta que ia moído para a intimidade, e para aquilo que nós não queremos ver, para aqueles sítios que quando pisamos estamos a pisar vidro. E este filme, é muito sobre a intimidade, sobre as coisas que nós não mostramos. E nesse sentido, as escolhas são específicas. O facto de eu ser uma pessoa de livre arbitrio já é uma posição política, eu acho que sim que posso escolher e que devo escolher. Porque a liberdade é fundamental, portanto fazer um filme assim, como fiz, retratando estas situação que são situações de limite, e de uma grande intensidade emocional, sim, é um statement político também.

RDB  – Estás por exemplo ligada à “Woman On Waves”, como é que vês a situação, agora, depois de aprovada a lei do aborto? Achas que as coisas vão melhorar?

RF – Eu estou ligada à “Woman on Waves” e sou fundadora de uma associação que se chama “Médicos pela escolha”, que abrange não só profissionais de saúde como outras pessoas, é um movimento que surgiu com o referendo. Exactamente porque eu tinha, no outro referendo, votado apenas, e desta vez senti que tinha de participar de uma forma mais activa. Portanto parei, estava na altura a montar documentários e parei tudo, para poder estar a participar e fazer aquela campanha durante dois meses, porque senti que tinha de o fazer. Senti que tinha de o fazer porque é um direito fundamental. O nosso direito à escolha é fundamental e ninguém nos pode tirar, para além que em Portugal era já um caso gravíssimo de direitos humanos com umas situações terríveis a que as mulheres eram sujeitas. Neste momento, apesar de eu não ser uma profissional de Saúde e de eu não estar no campo, os profissionais que conheço e que estão, estão a fazer um óptimo trabalho e a prova é que não têm surgido incidentes. E era uma coisa habitual, sabia-se de várias mulheres por ano que chegavam em muitas más condições de saúde, muito frágeis e que acabavam por vezes por morrer. Portanto, penso que sim, a classe de médicos e enfermeiros é também há algum tempo abafada com isto tudo e queria, de alguma forma, respeitar as pessoas que estavam à sua frente, as mulheres que se prestavam aquela vontade. Isto tinha mesmo que acontecer, já foi tarde. E, todas as informações existentes é que neste momento está a correr bem. Mesmo pessoas perto de mim, que precisam de utilizar esse serviço do Serviço Nacional de Saúde, que o fazem recorrendo ao mesmo. Não necessitam sequer de ir para o privado.

RDB – Sentes que as pessoas têm direito de escolha em todos os campos, e parece que, não sei se concordas, que para as pessoas é mais fácil aprovar uma lei do aborto que uma lei relacionada ao casamento homossexual.

RF – É. A questão é sempre a mesma, não é? São os nossos direitos fundamentais, é tão difícil viver que se não tivermos os nossos direitos fundamentais começa quase a tornar-se uma tarefa impossível. E ninguém pode viver sem amor realmente, por isso não entendo sequer como é que existem partidos políticos que negam o acesso à consagração, se há esse amor. Há umas pessoas que acham, eu posso mas o outro não pode, o outro que é diferente de mim não pode. E depois todas aquelas respostas absolutamente ridículas como “Ah, é tradição”, se fosse tradição matarmos todos os bebés que nascem loiros de olhos verdes, isso justificava o quê? Isso não justifica nada, a tradição não justifica nada. Tradição, é muitas vezes, um sinal de repressão que se mantém há muito tempo.

Portanto não faz sentido nenhum, e expressei-me, tal como muitas outras pessoas, publicamente e a associação a que pertenço que são as Panteras Rosa. Fizemos uma acção, no dia em que infelizmente o projecto lei foi chumbado. Exactamente para mostrar às pessoas, ou toda a gente que quisesse ver, que estava a ser negado a uma grande parte da população portuguesa um direito fundamental. Eu estou profundamente convencida que daqui a uns anos tudo isto vai ser ridículo. Ou seja, isto que a assembleia da república fez vai ser considerado uma atitude homofóbica como quando se tentou abolir a escravatura e houve pessoas que votaram contra, e nós achamos que não é sequer possível. Espero que quando o meu filho crescer ele olhe para trás e pense, como é que é possível, como é que puderam descriminar estas pessoas porque elas não eram exactamente igual aos outros, à maioria?

RDB  – Ser mãe teve influência na forma como vês o mundo? Em Coimbra eras conhecida como a Generala Vermelha, achas que agora queres ainda mais mudar as coisas por causa do teu filho?

RF – (risos) Eu acho a influência que o meu filho teve foi o chamar-me à terra. Passei a ter os pés bem assentes na terra e olhar para o mundo e para coisas que nunca tinha olhado antes, ele faz-me olhar para as coisas. E claro, a minha vontade de mudar, continua. Mas não alterou o significativamente isso, eu acho que o que alterou, foi o facto de não ter medo. Ou seja, desde que nasceu o meu filho perdi o medo de tudo. E mesmo antes, não era ser uma pessoa medrosa, mas há algumas coisas que nos assustam, fazem estremecer, encolher para dentro. E desde que o meu filho nasceu, se antes não tinha medo em relação ao Cinema – quem faz um filme não pode ter medo senão não faz – deixei de ter medo em relação a tudo, não era possível ser mãe e ter medo. Tinha um ser pelo qual era responsável, uma pessoa. Por isso sim, o meu filho fez-me perder o medo que eu tinha.

RDB  – Voltando ao cinema, como é que achas que vai ser a recepção ao teu filme? Aquela velha problemática do Cinema Português não ter audiência.

RF – (risos) Eu acho que um filme para ter pessoas tem de ser visto, não é? Chegar às pessoas. E é cada vez mais complicado, vivendo como nós vivemos e pagando o que nós pagamos para ir ao cinema. Não passa pelo número de cópias, eu não conheço muitas pessoas que tenham dinheiro para ir ao cinema ver todos os filmes que querem ver, eu não tenho e sou uma privilegiada, portanto imagino os outros. Sim, eu gostava que toda a gente tivesse acesso ao filme, pudesse ver. Sou pelo livre acesso a todas as produções culturais, e acho mesmo que caminhamos para outras formas de acesso, e espero que isso aconteça o mais rapidamente possível. Acho que a problemática do Cinema Português é falsa, não passa nada por aí. Acho que cada vez menos as pessoas se preocupam por isso. Cada vez mais nós vemos coisas porque vemos na Internet, temos outras formas de acesso que para mim são fundamentais, e passam mesmo pela democratização das criações e do que nós queremos.

RDB – Então achas que o futuro do Cinema Português passa pela internet?

RF – Acho que o futuro do cinema passa pelo futuro. E mesmo outras formas de expressão e de arte, como a música, passa pelo livre acesso. Passa pela Internet, que é a forma mais quotidiana que nós temos neste momento de acesso. Claro que existem outras formas, coisas que eu não entendo porque não há cá mas que acontecem. Em França tu vais a um filme em Paris e se tu tiveres um cartão de estudante a sessão do meio-dia e a sessão das duas da tarde é de graça para veres um filme francês. Imaginas a diferença se os filmes portugueses fossem de graça para todos os estudantes na sessão da uma ou das duas? Que normalmente são sessões que têm uma ou duas pessoas. Estão vazias porque ninguém vai a essa hora, e muito mais jovem portugueses iam ver filmes portugueses. É tudo uma questão de política cultural e de quais são os nossos propósitos. As pessoas cada vez mais percebem que o amor é fundamental para viver, que as relações humanas são fundamentais para viver e o acesso à cultura também. O acesso à cultura traz felicidade, alegria, dá prazer, e isso é essencial para viver. O acesso a um filme, o acesso a um espectáculo, a uma música ou um livro são fundamentais para a nossa felicidade, para a construção da nossa vida, da nossa pessoa.



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