Vicente Alves do Ó

Vicente Alves do Ó

Como o cinema passou um século inteiro a sonhar com o futuro. Vicente Alves do Ó sonha o seu cinema a um tempo.

Os teus dois filmes e livros são sobre mulheres, poetisas ou não e algumas alentejanas. O que existe em comum nos teus filmes?

Para filmar e escrever tenho escolhido mulheres fortes, o que tem a ver com o facto de em Portugal fazer-se muito pouco cinema onde estas sejam protagonistas. Eu acho que continua a ser um universo muito mais interessante do que o masculino. O António Pedro Vasconcelos é que dizia: ”ah as mulheres”- the dark continent”.

O que existe em comum, nos livros e filmes são estas pessoas que se auto marginalizam ou são marginalizadas. Estas surgem como pessoas um bocadinho outcast e que têm a capacidade de viver e lutar para lá das convenções. Eu quero fazer filmes sobre pessoas que tenham uma força interior, uma curiosidade e uma intensidade fascinante.

“A obsessão e a perda” estão presentes nos teus filmes. É a tua temática identitária enquanto criador?

Sim. Completamente. A perda e a obsessão são sentimentos tramados que estão sempre presentes nas minhas histórias. Como se procura-se de alguma forma salvar-me através da criação.

O teu próximo filme é uma comédia romântica intitulada “O Amor é Lindo…Porque Sim!” e depois vais filmar “Al berto, as mãos nunca mentem”  que estreia no fim do próximo ano. Como descreves o poeta Al berto?  

Eu conheci o Al berto pessoalmente e  cresci com ele porque somos ambos  de Sines. Descrevo-o como uma personagem marginal, um homem fascinante, que sempre fez e disse sempre o que queria. O Al berto era uma pessoa maravilhosa e deliciosamente doido. Curiosamente a obra máxima chama-se “Medo” e eu nunca vi medo naquele homem. Existe uma identidade com a condição artística, a minha e a dele.

Eu sou viciado em poetas. Em cinema quero fazer uma trilogia, depois da  “Florbela”,  vou fazer um filme sobre o Al berto e por fim um que conte a vida da Sophia de Mello Breyner Andresen.

A região alentejana surge nos teus livros e filmes. O que é o Alentejo?

O Alentejo é a cabeça. Olho sempre para o Alentejo e vejo uma cabeça. É onde se pensa e é de alguma forma o próprio pensamento. Eu tenho de fugir desta confusão de cidade. Aquele sítio ajuda-me a ter ideias e a concluir. Dali eu tentei fugir, à minha condição sineense, preso numa vila alentejana. Há algo que acho que existe mais a sul, no Alentejo, uma sabedoria inata que me fascina imenso.

O sul alentejano é uma espécie de identidade artística como era o Porto para o Manoel de Oliveira?

Eu penso que virá a ser. Cada  vez mais tenho histórias e imagens que no futuro queria filmar lá, a sul.

Com o filme Florbela foram-te atribuídos dois prémios (melhor filme e melhor realizador) no Festival de Cinema de Bogotá. Como é o cinema colombiano ou sul-americano?

Eu gosto muito do cinema sul-americano e tenho um especial carinho pelo cinema argentino. Vão-se superando com uma tradição de storytelling de alta qualidade e com pouco dinheiro. Aprenderam a suplantarem-se e tal como nós, portugueses também vão a festivais e ganham prémios mas só eles conseguem exportar os seus filmes.

Porquê? 

Nós somos muito influenciados pela cultura francófona e quando a Nouvelle Vague começa a desmontar a narrativa, deixámos de lado os argumentistas e as suas histórias. Da desconstrução temos de passar à construção. Há uma certa perdição. Os franceses deram a volta. Nós congelamos nesta relação difícil com o storytelling. Os sul americanos são óptimos contadores de histórias, os filmes são bons e há uma aproximação ou consagração à arte.

Foste fundador dos Prémios Sophia… Porquê a criação destes prémios?

Apoiei o aparecimento dos Prémios Sophia pela possibilidade de premiar  e reconhecer o trabalho de alguns sectores do cinema que são invisíveis. Em Portugal temos o culto do realizador e às vezes de um actor ou outro. Os “Sophia” permitem reconhecer o trabalho do director de fotografia, do compositor, do maquilhador…  Todos eles também criam em colectivo aquela forma de arte.

Começaste como argumentista. Qual o argumento que escolheria entre todos os filmes?

Um filme recente cujo argumento me deixou completamente destruído, foi o “Uma separação”, um filme iraniano, do realizador Asghar Farhadi. Um filme que venceu todos os prémios. Descodificando-o surge como um storytelling do mais alto nível.  O guião é absolutamente extraordinário porque transforma um drama num policial.

Como se ensina cinema aos alunos sendo que existe algo de indefinível e intransmissível?

Tenho dado aulas apenas a ensinar cinema no seu lado mais prático. No máximo podes ensinar umas regras muito básicas aos miúdos mas depois existe 80 % que eles têm de aprender sozinhos, sempre com a ideia de que eles se (auto)libertem. Ensinar a ver o que já foi realizado, muitos querem ver cinema mas não veem nada antes de 80 para trás. Não têm curiosidade pelos mudos que são fabulosos e uma excelente forma de aprender a fazer cinema porque não tens a palavra. Esse era um cinema virado para o público. No cinema dos anos 20/30/40 percebes que eles estão a comunicar contigo. Eles não te deixam, numa espécie de comunhão pela arte.

Pela defesa da igualdade de género calçaste sapatos de salto numa iniciativa da revista Máxima. De que realizadoras portuguesas ou estrangeiras calçarias os sapatos?

Eu começava por calçar os saltos da realizadora argentina, Lucreia Martel principalmente no início da carreira dela. A Jane Campion também fez filmes que eu gostei bastante. A Teresa Villaverde revelou-se especialmente na realização d’ “A Idade Maior”. Também calçava os saltos altos da realizadora de comédias francesa, a Agnès Jaoui, acho-a muito divertida e com uma cabeça muita gira. Com ela gostava de jantar um dia.

Como defensor de causas como vês a situação dos refugiados sírios?

Eu sou totalmente a favor que eles venham para cá e que venham todos. Por mim não vinham 3000 até vinham 30 mil., 40 mil,… Portugal já foi muçulmano apesar das pessoas se esquecerem por vezes mas a história fala da memória. Existe uma espécie de “karma histórico”.  Vemos pessoas enfiadas dentro de comboios a entrar na Alemanha à semelhança e ao contrário do que há 70 anos sucedia. Tínhamos seres humanos que eram enfiados na Alemanha e enviados para os campos de concentração.

Este continente está a morrer, precisa de gente. Nós não temos crianças, logo que venham a dos outros e que povoem o nosso país.

Neste país existe algo sempre entre o desejo e o destino?

É a história da utopia e do fatalismo. Somos um povo eternamente entre a utopia (do que já fomos, apesar de não termos sido assim tão grandes) e do fatalismo que nos persegue. Enquanto povo somos uma espécie de tragédia grega em que parece não haver hipótese de fuga. Aceitamos a nossa própria tragédia que é apenas medo, de sair do sítio onde estamos.

Ingmar Bergman afirmou que a: “minha peça começa com o ator que desce à plateia, estrangula um crítico e, de um livrinho preto, lê todas as humilhações que sofreu e tomou nota. Depois vomita sobre o público. Em seguida, afasta-se e dá um tiro na cabeça.” Imagino que não te identifiques com esta ideia?

Eu adoro o cinema do Bergman mas acho que esta mensagem é um pouco excessiva. Se és democrata, logo livre, tens de aceitar as pessoas que não gostam dos teus filmes incluindo as pessoas que se levantam e vão embora.  Não tenho a pretensão de tudo o que faço tenha de agradar a todos. Às vezes sinto-me injustiçado, sim, com o que escrevem. A crítica está muito dentro da própria fábrica de fazer os filmes. Há uma relação demasiado próxima entre quem faz, quem critica e quem apoia.

Enquanto espectador identificaste mais com os realizadores utópicos ou anti utópicos? Eu sou sempre mais pelo utópico.

Sem dúvida com os utópicos. Num futuro mais próximo ou distante gostava de fazer filmes do género do fantástico numa visão da utopia cinematográfica.

Ambiciona-se ser um realizador que têm uma visão pessoal do mundo ou é algo que acontece?

Penso que não se tem noção de que se faz uma obra-prima.

O que transforma um cineasta em imortal?

É o amor pela humanidade. Os realizadores que amam a vida como o mistério ..

Não pensaste ser uma personagem principal ou secundária dos teus filmes? Como o Orson Welles ou o Woody Allen?

Hei-de ser. A Dalila Carmo sugeriu até dirigir-me como actor.

Quais os filmes que o Outono de sugere?

O Outono sugere-me os filmes do Bergman. Também vejo filmes do Woody Allen e do Luchino Visconti. É um realizador de outono numa ideia de nostalgia. Por fim um outro realizador italiano, o Sergio Leone tem a luz da estação. Como filme desta época escolho “Les parapluies de Cherbourg” do Jacques Demy.

Quais são os 15 pontos ou menos da alma de um realizador?

Para além do amor …Há um ponto essencial  e tens de aprender a viver com ele, o da frustração. O realizador é vive-a na sua obra sempre inacabada.

Conta-me o que quiseres…

O cinema continua a ser uma arma, a ter algo para dizer às pessoas mas não numa atitude falso afirmativa ou demasiado hermética mas sim numa intenção que se define da forma como é visto, em comunhão numa sala. Ao perder essa magia, desaparece a força do cinema. O que de mais importante acontece é em sala, não é no ecrã. Um grande filme tem de ser partilhado com o público. As pessoas precisam de ver filmes que comuniquem com elas. O sentimento surge como mais importante do que o lado  da cabeça, mais racional, pelo menos para o público português. Sempre teve essa importância fundamental de mudar mentalidades. A arte de fazer filmes continua a ter um espaço incrível na vida das pessoas. O cinema passou um século inteiro a sonhar com o futuro. Essa foi e é a força maior do cinema.



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