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Quinze Pontos na Alma

Entrevista ao realizador Vicente Alves do Ó.

Chama-se “Quinze Pontos na Alma” e encontra-se numa fase final de pós-produção. É a história de uma mulher e das suas apoquentações despoletadas por um fugaz e trágico encontro com um estranho. O trailer permite-nos prever uma produção que difere do que normalmente por cá se faz. Quisemos saber que filme é este, quais as motivações que estiveram na sua origem. Foi o que perguntámos ao realizador Vicente Alves do Ó.

Em primeiro lugar gostava que me explicasse sobre o que versa o argumento. Sei que há uma personagem que “investiga” a morte de um estranho e a música do trailer sugere quase um desejo de vingança…

O argumento do “Quinze Pontos na Alma” trata de uma mulher – Simone Avelar – que depois de um dia de trabalho e a caminho de uma festa muito particular, depara-se com uma situação algo insólita e quase trágica. Em pleno viaduto Duarte Pacheco, um homem prepara-se para o suicídio. Dada a situação, ela pára o automóvel, aproxima-se dele e num momento estranho e de grande proximidade, os dois trocam um beijo e logo de seguida ele atira-se para o vazio. Este acontecimento, invulgar e no entanto tão presente, lentamente, começa a minar a vida de Simone e torna-se numa “missão”.  Se pensarmos que a vida às vezes nos troca as voltas e que temos muitas vezes de lhe fazer frente, sim, pode chamar-lhe uma vingança. Mas uma vingança contra aquilo que a vida nos obriga a ser ou a parecer.

Mas é um filme sobre uma mulher contra o resto do mundo, no sentido “mulher com objectivo quer ter algumas respostas”?

A mulher procura respostas sim… mas sobre si mesma, sobre quem é, o que quer, a sua insatisfação, a sua felicidade, as suas conquistas. A morte daquele homem é como a gota de água que transborda o copo. É o momento. A vida que, de repente, lhe chama à razão. E a Rita Loureiro, na sua demanda, enfrenta muita coisa, gente, dores, amores, e por onde passa destrói, queima, purga a realidade, levanta o véu da suposta placidez da vida em que ela e outras personagens parecem viver. É uma mulher com um plano, não um plano maquinal, mas sim emocional. Não precisa de armas nem de vinganças carnais para atingir os seus objectivos.

Como é que surgiu esta história? Qual foi o motivo para a criar? Foi a vontade de filmar um certo extracto social?

Não… não foi a vontade de filmar um extracto social… A história nasceu como nascem muitas histórias. Uma imagem, uma cena, uma frase, nunca escrevi nada que nascesse de ” um tema”.  Tenho sim e tive, uma preocupação de aproximar esta história das pessoas que vão ao cinema. Para que haja uma identificação, uma realidade que elas conheçam ou ambicionem nesta sociedade materialista, em que nos dizem que os ricos são felizes porque são ricos. E se isso é um cliché, também o é ao contrário. O cinema português filma os pobres sempre como desgraçados ou como orgulhosamente salazaristas ( limpinhos e felizes na sua ignorância). Penso que a vida e a ideia de felicidade é uma coisa transversal. Toca a toda a gente, mas a imagem de hoje ( televisão, revistas) leva a que os espectadores “médios” tenham já de si uma espécie de censor que rapidamente os afasta de tudo aquilo que não querem ver ou saber.  Queria vencer essa barreira. Chegar aos espectadores como eu. Gente normal, com uma vida minimamente equilibrada, que estudou e até fez alguns planos de vida. Essas pessoas que lutam por cumprir listas de desejos que muitas vezes nem questionam. São essas pessoas que me interessam e que me intrigam.

Então depreendo que podemos esperar um filme com respeito pelo público.

Respeito, sem dúvida. E muito. Sinto que um criador deve ter sempre um sentido de responsabilidade por aquilo que traz ou dá ao mundo. Mesmo que seja contestatário, revolucionário, incongruente, louco, polémico. Mas se aquilo que fazemos, filmes, livros, peças de teatro, se queremos comunicar, então sim, devemos ter esse respeito e essa responsabilidade não só para com um público mas para com todos os outros criadores que antes de nós trouxeram tantas maravilhas ao mundo das artes.

Qual dos grandes chavões lhe parece que define melhor este filme, é um filme autoral ou de público?

Não sei se existem chavões para definir um filme. Qualquer que seja. Quem o faz, escreve ou realiza, poderá ter uma ideia precisa ou várias ideias sobre o que está a fazer. Claro que há cinema com objectivos muito definidos, quer seja autoral ou de público. Nunca pensei nisso porque aquilo que escrevo e que me interessa é, sem dúvida, muito pessoal, muito meu . Se o público aderir ficarei mt feliz.

Apesar de já ter feito parte do processo de criação de longas-metragens antes, sente essa responsabilidade redobrada pelo facto de ser a primeira longa que realiza?

Sem dúvida. O realizador acaba por ser o grande e verdadeiro responsável pelo filme, mesmo que o orçamento não seja da sua responsabilidade, mesmo que tenha condicionantes que o produtor impõe, porque é um trabalho de equipa: técnicos, actores, criativos. Não deixa de ser uma responsabilidade acrescida. Como argumentista há um divórcio natural que sempre compreendi. O realizador tem que se apropriar do argumento e filmá-lo segundo a sua visão. Isto não tira importância ou relevância ao trabalho do argumentista que, muitas vezes, está na génese do projecto. Mas em última análise é o realizador que deve e tem que defender todo o trabalho de dezenas de pessoas que, afinal, estão e foram contratadas para o auxiliar, inspirar e dar vida à sua visão de uma história.

E como é que se sente na pele deste lobo? O trailer deixa a sensação de um imaginário conseguido. Sei que o Vicente é um apaixonado pelo cinema americano dos anos 50.

Lobo é uma palavra forte. O filme foi construído com muito cuidado, muita atenção, com tempo, sou muito preciso naquilo que quero. Penso. Reflicto. Faço o meu trabalho de casa. Sempre tive gostos muitos díspares, mas onde a imagem parece existir e confluir: o cinema, a arquitectura, a fotografia, a moda, o teatro, a ópera, a História. Todos estes mundos me influenciam nas minhas escolhas, construindo um mundo muito próprio, ou pelo menos, um mundo em que me sinto confortável e com o qual me identifico. A beleza fascina-me. Acho-a perigosa, desconcertante, impune e trágica.

Quanto às minhas influências, elas são muitas e variadas. Sim, adoro o cinema americano dos anos 50, mas também fui beber ao cinema italiano (que considero um dos melhores do mundo e de sempre nas suas décadas de ouro) e algumas coisas francesas das mesmas épocas. Não se trata de revivalismo, muito pelo contrário. Fascina-me a depuração. A genialidade do traço e da forma. Quando é bem feita, é intemporal e considero que muito cinema dessa altura criou obras geniais e intemporais.

Conseguiu ir longe nessa procura de fazer o filme que imaginou, mesmo tendo em conta que isso é impossível?

Nunca fazemos o filme que queremos e ainda bem… para que continuemos a tentar, sempre à procura da perfeição das coisas, da vida, dos filmes, das emoções. E na imperfeição de tudo, encontramos o mais importante: a nossa humanidade.

Quando tempo de filmagens é que teve e como correu o processo?

As filmagens decorreram entre Janeiro e Fevereiro de 2009. Foram seis semanas de rodagem com muito frio, chuva, alguns contratempos, mas acima de tudo 6 semanas felizes. Tive a sorte de reunir uma excelente equipa de trabalho que, sob o olhar atento da produtora Pandora da Cunha Telles, respondeu sempre com energia e talento àquilo que o projecto se propunha. A preparação durou outros dois meses. Novembro e Dezembro de 2008, onde trabalhei com todos os sectores do filme, tentando passar o imaginário, a linguagem e o sentido do filme e daquilo que queria fazer. Tive mesmo muita sorte. Pessoas muito profissionais, de bom trato e de um rigor excelente. Depois da rodagem continuei o trabalho com o editor, montador de som, músico e agora finalizamos os genéricos de princípio e fim de filme. Mas foi um processo feliz e acho que o trabalho, sempre que for possível, deve e pode ser uma experiência feliz. Já tinha filmado 3 curtas-metragens e quando chegou a vez da longa foi uma grande alegria. Gosto de estar no plateau, gosto de filmar, gosto do stress, gosto da adrenalina que envolve uma filmagem. Sem dúvida é muito bom materializar aquilo que durante anos andou pelas nossas cabeças e pelos nossos cadernos.

Ao nível da fotografia parece-me um trabalho com uma sensibilidade diferente do que costumamos ver por cá. Houve alguma intenção especial com esta estética, ou era simplesmente a que fazia mais sentido?

Houve um cuidado estético muito grande sim, não só porque a história o pedia, como por tudo aquilo que a imagem pode e deve dizer para lá das palavras. Trabalhámos muito para criar qualquer coisa de “diferente” e com diferente quero dizer algo pouco comum no cinema português. Uma estética que associamos sempre a outras cinematografias com muitos mais recursos. Mas aqui, mesmo sem esses recursos, é possível fazer algo que evidencie o belo, precisamos é de trabalhar a dobrar para encontrar por preços mais baixos tudo aquilo que precisamos. Tivemos uma equipa no guarda-roupa e na decoração que se empenhou a fundo. Tivemos a sorte de ter alguns arquitectos que nos aconselharam e levaram a sítios onde poderíamos filmar e tive a sorte de encontrar um grupo de actores profissionais que, além do talento eram e são também pessoas muito bonitas. A Rita Loureiro, Dalila Carmo, Marcello Urghege, João Reis, Carmen Santos, Ana Moreira, Ivo Canelas, Filipe Vargas, todos eles trouxeram para as personagens um estar onde o requinte e a beleza colocavam ainda mais em evidência a insatisfação das suas vidas.

Deve ser uma enorme alegria poder contar com um grupo de actores de tanto talento na primeira longa enquanto realizador. Como é que trabalhou as personagens? Uma vez que o argumento é da sua autoria sentiu que não queria modificar muito os diálogos ou prefere dar espaço às ideias dos actores?

As personagens eram muito distintas e marcadas. Tentei dar-lhes dimensão, comportamento, história. Alguns dos actores já conheciam o meu trabalho, o que foi mesmo caminho andado para chegarem rapidamente ao que lhes era proposto. Com os outros passamos muitas tardes de trabalho a dissecar as cenas, as intenções, os sentimentos, as vontades para criar um corpo que além de psicológico fosse também físico. O estar e o ser na sua totalidade.  As modificações no argumento quer seja na história ou nos diálogos existe sempre: desde o momento da preparação até à edição final. Oiço os actores, discuto com eles e quando as propostas são boas e vão de encontro àquilo que o filme precisa sou receptivo e utilizo-as. Posso saber muito bem aquilo que quero, mas também quero sentir que quem entra comigo num filme também está a fazer a mesma viagem.

Neste momento o filme está numa fase entusiasmante em que se aproxima do produto final. Que reacção espera do público? O filme vai fazer o circuito de festivais primeiro ou vai para as salas comercias mal haja a oportunidade?

O filme está quase pronto. Este mês fechamos o tratamento de cor e os genéricos de príncipio e fim. E pronto, o filme fica feito e já não se pode mexer mais. Foi um processo demorado, demasiado demorado, mas que nos possibilita sempre pensar sobre todas as escolhas que fazemos. A montagem do filme pode alterar tanta coisa e temos que pensar, passar por várias versões de corte até chegarmos a uma solução que seja o mais aproximado daquilo que com que sonhámos. A montagem e a música são finalmente a roupagem final para a história. Está lá tudo. Define-se tudo. O circuito dos festivais é complicado e moroso. Entusiasma-me a ideia de que um festival de cinema é um espaço onde a cinefilia ainda vive de uma forma quase nostálgica, mas ao mesmo tempo, também reconheço os interesses comerciais e as subjectividades das escolhas. Em Portugal dá-se demasiada importância aos festivais de cinema, como se isso validasse uma obra ou um criador. E esquecemo-nos que, não será por causa de um prémio que um filme viverá a sua eternidade, mas sim, a marca que conseguiu junto de um público que o levará consigo geração após geração. Se o filme for a festivais, claro que ficarei satisfeito pois isso, mais do que tudo é publicidade num mundo tão competitivo e tão cheio de informação. Mas é o público e a exibição do filme que me entusiasma.



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