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O Mistério da Camioneta Fantasma

Fazer da história um despertar.

O Mistério da Camioneta Fantasma, espectáculo integrado nas Comemorações do Centenário da República de 5 de Outubro, que decorre em 2010 e 2011, nasceu de uma investigação histórica. Como muitos dos espectáculos de Hélder Costa, um dos mais importantes e carismáticos dramaturgos portugueses contemporâneos. Neste caso tudo começou quando ele concorreu, em 2004, a uma bolsa do IPLB, tendo depois, com o material recolhido, criado também um espectáculo.

A noite de 19 de Outubro de 1921

Nesta noite um grupo de marinheiros percorre Lisboa numa camioneta e assassinam um conjunto de republicanos importantes: António Granjo, primeiro-ministro que tinha sido deposto na sequência de insurreições militares, José Carlos da Maia (Adérito Lopes), oficial da Marinha, antigo ministro de Sidónio Pais e de José Relvas, os militares Freitas da Silva e Botelho de Vasconcelos e Machado de Santos, este um personagem marcante do 5 de Outubro de 1910 (que ficou conhecido como Herói da Rotunda, pela forma como resistiu e defendeu posições contra as forças monárquicas). Durante algum tempo os monárquicos tentam passar a ideia de que este massacre ocorreu como resultado dos movimentos revolucionários dirigidos pelo tenente Manuel Maria Coelho ( herói do 31 de janeiro de 1891) e que eclodiram na manhã do próprio dia 19 de Outubro, mas em 1923, o Tribunal Militar Extraordinário de Santa Clara, presidido por Óscar Carmona, iliba os oficiais revolucionários e condena os verdadeiros assassinos a pesadas penas.

No entanto descobre-se mais tarde, pelos esforços e investigações de Berta Maia (Rita Fernandes), viúva de Carlos da Maia (apoiada pelos polícias Barbosa Viana (João D’Avila) e Virgílio Pinhão (Sérgio Moras), que os marinheiros, comandados por um cabo, Abel Olímpio (Luís Thomar), conhecido por “Dente de Ouro”, não tinham agido por sua lavra, sim, a mando de uma conspiração monárquica. O grupo de conspiradores integrava o padre Maximiliano Lima (Sérgio Moras), o militar e escritor Gastão Melo Bastos (Pedro Borges) e o empresário teatral Augusto Gomes (Ruben Garcia), apoiados por alguns importantes empresários, como Alfredo da Silva (João d’Ávila) e Carlos Pereira (Sérgio Moura Afonso), mandantes de um plano que, desta forma sangrenta, pretendeu vingar a morte de D. Carlos e do Príncipe Filipe. Só que com o golpe do 28 de Maio de 1926 o processo, até hoje, nunca mais iria ser reaberto.

Ver a história pelos olhos do inimigo

Nos textos de apoio ao espectáculo, é descrito, de forma sintética o trabalho dramatúrgico desenvolvido: “Consistiu em desenhar o enquadramento do 19 de Outubro, focando a oposição monárquica, a conspiração dos exilados e o seu apoio por parte do Rei de Espanha, a acção determinante – no terreno e na confissão do Dente de Ouro -, dessa figura sinistra, o empresário teatral Augusto Gomes, e a incapacidade ou total impossibilidade de os Republicanos terem conseguido a total clarificação deste “mistério” perante a opinião publica.”

Hélder Costa, que estudou direito e se formou em Letras, na Sorbonne, é historiador por gosto, por vontade de descobrir. Diz-nos que ao longo destes anos todos de pesquisa, foi desenvolvendo métodos próprios de investigação. Um deles é ir procurar ver a história pelo lado dos inimigos. Para ele, estes, ao contrário dos apoiantes que têm tendência para efabular os acontecimentos, são mais rigorosos. Neste caso os inimigos eram os monárquicos e Hélder Costa foi seguir-lhes os passos, tentando descobrir a quem é que eles iriam falar para pedir apoio para derrubarem o regime republicano. Acabou por encontrar um curioso documento, uma carta do embaixador inglês a dar conta do pedido de apoio já em 1921, do general Gomes da Costa (que viria a chefiar o golpe de 28 de Maio de 1926). No caso concreto desta investigação também foi essencial o livro que Berta Maia escreveu, bem como vários textos desgarrados, entre os quais um de Carlos Ferrão, publicado na Opção, a seguir ao 25 de Abril e que lhe deu muitas pistas.

E se a trama principal é este jogo de conspiração política, onde surgirão também, de forma caricatural, o rei de Espanha, o general Milan Astray (Célia Alturas), Salazar (Pedro Borges) e a sua governanta, Hélder Costa não descura a importância do papel dos artistas, desde António Ferro (Sérgio Moras), a sua mulher, a escritora Fernanda de Castro (Vânia Maia), a Almada Negreiros (Adérito Lopes) e ao próprio Fernando Pessoa, não poupando críticas o movimento “ORPHEU” de 1915, acusando-o de ser um movimento vanguardista anti-republicano e futurista que serviria, na sua maioria, de apoio à ditadura salazarista. Como contraponto a este movimento intelectual Hélder Costa ressalta o papel da Seara Nova, destacando as intervenções de Jaime Cortesão (Sérgio Moura Afonso) e Raul Proença (Ruben Garcia).

A procura de uma máxima eficácia narrativa

É uma marca dos espectáculos de Hélder Costa: ele quer contar-nos uma história e quer contá-la para que demos conta daquilo que ele chama “a história mal contada”. Não se detêm por isso em abordagens demasiado intimistas dos personagens. Eles estão ali para esclarecer o campo das acções e esse, no olhar que lhe lança o dramaturgo, está subordinado a uma rede de interesses políticos e económicos onde se destacam os dos conspiradores monárquicos. Tudo no espectáculo serve esse objectivo. Os actores representam múltiplas personagens. Excepto os que estão encarregues do desempenho de Berta Maia e de Abel Olímpio, o Dente de Ouro, os dois eixos fundamentais do desenvolvimento dramático da história. Essa procura de uma máxima eficácia narrativa estende-se à forma como o espaço cénico é preenchido. Falámos disso:

“Fico sempre aflito quando tenho o espaço mais ocupado. Gosto do espaço vazio, da vida que o espaço vai ocupando. E a luz. Agora, nas últimas peças, comecei a dar mais importância à luz. Eu nunca me preocupei com isso.  Ao fim e ao cabo é um interesse maior pela estética. A certa altura começou a apetecer-me mais coisas.”

O trabalho da Barraca, que sempre assumiu procurar um teatro popular, um teatro que privilegia a comunicação com o público, que procura a sátira politica, a ironia, o gozo com as situações, dá muita importância à música e a esta simplicidade cenográfica (que sempre esteve aliada à sua grande vocação para a digressão, tanto nacional como internacionalmente). No entanto nunca vi no trabalho de Hélder Costa, ele que trabalhou com excelentes actores, uma grande preocupação com a direcção de actores. Por isso fiquei surpreendido quando na nossa conversa, ao falarmos da forma como o elenco se renovou, ele se manifestou interessado pela evolução do trabalho de alguns actores. Disse-lhe que achava isso muito curioso nele, estar-me a falar do trabalho do actor:

“É, porque eu ultimamente preocupo-me mais com os actores eles próprios…Dantes era mais o espectáculo…Para mim, agora é perfeitamente fundamental puxar pela criatividade própria do actor. Sou contra o encenador papá, vai para ali, vai para ali, aquilo que na América Latina dizem, com alguma piada, o encenador sinaleiro, mas a pouco e pouco, comecei a preocupar-me a sério com os actores, precisamente em 2005 com este Mistério da Camioneta Fantasma. É uma questão de maturidade e de poder fazer um esforço para puxar pelo actor. Há um trabalho sobre a tensão, sobre o texto.”

Liguei esta preocupação com o trabalho do actor ao facto de A Barraca surgir com um elenco renovado, como novos actores que, hoje, mais carentes de direcção, são muito mais exigentes sobre o trabalho de encenação. É interessante ver a capacidade de regeneração e de renovação de elencos de A Barraca, um dos grupos portugueses mais prestigiados internacionalmente, principalmente no espaço latino-americano – onde já trabalharam alguns dos mais importantes actores portugueses (como, entre muitos outros, Mário Viegas, Maria do Céu Guerra, Orlando Costa, Raul Solnado, João D’ Ávila, Laura Soveral)  e que, à beira de fazer trinta e cinco anos, surge com um colectivo onde a experiência de Luís Thomar (no grupo desde 1986) e a de João Ávila, se cruzam com a de actores mais novos como Sérgio Moura Afonso, Sérgio Moras, Rita Fernandes, Célia Alturas, entre outros.

Terminámos com um aspecto essencial do trabalho dramatúrgico de Heldér Costa: a sátira política, a ironia, o gozo, explorando o grotesco das situações. Falei-lhe da forma como aparece Afonso XII, o general Milan Astray, Salazar, a sua governanta:

“A ideia é a seguinte: é a distanciação brechtiana. Eu pus o Salazar novo, com uma camponesa que está a começar, que vai aprendendo com ele. E quanto ao rei de Espanha era para tratar com a distância, o grotesco. Achei que no peso desta peça tinha de haver estes cortes. Abaixo o neorealismo, o romantismo. Com todo o respeito. Não é para mim.“

Em cena de 23 de Setembro a 14 de Novembro, 5 ª a Sábado às 21h00, Domingo às 16h00 na sala 1 do TeatroCinearte.

Fotografia de Luís Rocha (MEF)



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