MONÒCULO – Foto de cena7© Jorge Albuquerque

MONÓCULO, encenação de Rui Neto

Arte que se influencia.

Está em cena no Teatro Aberto o monólogo que personifica o retrato da jornalista Sylvia von Harden, pintado por Otto Dix. É Rui Neto quem traz ao palco da Sala Vermelha a primeira versão deste espetáculo com a dedicada interpretação de Cristóvão Campos.

Um dos recursos que serviram à escrita deste artigo foi a conversa que Rui Neto teve com o autor do texto, publicado com o título “Como se ele fosse o próprio quadro” no programa do espetáculo, revelando a origem esta criação teatral.

À semelhança da primeira apresentação levada a cabo pelo próprio autor do texto, Stéphane Ghislain Roussel, foi também um ator que personificou a figura feminina de traços andrógenos do quadro, colocando em pauta a questão do género sexualizado. Este desafio requer uma particular sensibilidade da parte do ator que se propõem a aceitá-lo, explorando, em si, o que tem de feminino e procurando exponenciar essa experiência, sem a caricaturar.

No caso do ator português essa experiência não é novidade, uma vez que não há muito, tempo interpretou uma mulher – na verdade uma mulher que tinha de se fazer passar por homem – na mais recente versão da comédia Noite de Reis, de Shakespeare, encenada por Ricardo Neves-Neves no Teatro da Trindade. Portanto, digamos que a prática de andar às voltas entre o masculino e o feminino, Cristóvão Campos já a tinha. E, ainda que fosse no registo de comédia, a sua interpretação já revelava uma certa delicadeza e cuidado.

É como se pudéssemos ver o seu trabalho em duas perspetivas: em grande plano em Noite de Reis e, em plano apertado neste monólogo. E se me desligar do texto do espetáculo e ficar só com a sua expressividade consigo imaginar ouvir de fundo a versão de Glee da música “What it feels like for a girl”, da Madona, cantada por vários rapazes com o intuito de procurar compreender melhor as mulheres, enquanto seres escrutinados a toda a hora numa sociedade machista.

É claro que outros aspetos do espetáculo contribuem para este contexto de compreensão para com esta figura feminina. A maquilhagem deixa logo à partida claro que esta representação se refere a uma pintura, ganhando vida e palco para contar a sua história. A questão temporal, por exemplo, lembra o espectador de que em palco vê uma jornalista que escreve em dada época. O texto revela o país e os ambientes boémios que esta mulher e os seus conhecidos frequentam que, aliados ao cansaço da situação em cena, vão descortinando a verdadeira essência da personalidade desta Sylvia von Harden. Ainda que exponha várias vezes os complexos da sua aparência e se mostre descontente com tal, continua a ser uma mulher segura da sua opinião.

As sombras dançantes são um efeito de cena bastante apelativo, mas o brilhantismo deste espetáculo encontra-se no trabalho do ator. Desde a forma como interpreta o sofrimento contido até à libertação da personagem, passando pelo assumir da sua sensualidade e tomando as rédeas da sua felicidade e bem-estar.

Este é um trabalho belíssimo de uma parceria entre o encenador e o ator que demonstra, mais uma vez, ter muita qualidade. É um espetáculo íntimo e inebriante, ao qual desejo um merecido tempo em cena e, se possível, que marque presença em mais palcos deste país.

FICHA ARTÍSTICA:

Encenação Rui Neto

Dramaturgia Vera San Payo De Lemos

Cenário e Figurinos Marisa Fernandes

Desenho de Luz Diana Dos Santos

Vídeo e Sonoplastia Jorge Albuquerque

Interpretação Cristóvão Campos



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