DestaquE_DSC02578©Adriano Silva

“NOITE DE REIS”, de William Shakespeare. Encenação de Ricardo Neves-Neves no Teatro da Trindade

Ambiguidades clássicas.

Não é novidade que o célebre dramaturgo inglês concebeu uns enredos complexos. E nas comédias essa complexidade é o ingrediente apimentado! A vontade por encontrar clareza ou um desfecho cativa a atenção, contudo é possível que fique a sensação de que algumas personagens tinham algo mais para mostrar. Se as peças de Shakespeare fossem guiões de séries, haveria de ser como o universo de Star Wars: interminável com a quantidade de spin-offs que se podem criar a partir do dito por não dito das personagens secundárias.

Noite de Reis, de William Shakespeare está em cena no Teatro da Trindade devido a um convite feito em 2019 pelo diretor desta casa a Ricardo Neves-Neves para encenar um espetáculo. Curiosamente, esta foi a primeira casa de espetáculo a acolher o encenador depois que este deixou o conservatório, como o próprio contou em entrevista à Rua de Baixo. E está agora de volta com esta comédia, género artístico com o qual diz divertir-se muito, e que é o terceiro texto clássico que a sua companhia encena em 15 anos.

Em contraste com um dos seus últimos trabalhos, cujo elenco era todo feminino – Banda Sonora – apresenta agora um espetáculo com um elenco somente masculino, trazendo aos dias de hoje a tradição isabelina “que considerava o palco um lugar impuro para as mulheres” muito influenciada pelos costumes e crenças religiosas. Mas como nem só de atores se faz o teatro e a representatividade está para lá do casting, temos um ensemble musical feminino, assim como a autoria da cenografia, da luz e dos belíssimos figurinos dignos de um desfile de passerelle.

Há uma certa harmonia na pomposa montagem deste espetáculo que se adequa ao aparato desta “comédia de enganos e travestis” como lhe chamou Jorge de Sena. E esta escolha de elenco brinca com essa característica ambígua do texto ao usar elementos drag, cuja etimologia da palavra surge precisamente do teatro shakespeariano e do teatro elisabetano e se forma a partir de uma sigla que significa “dress as a girl”. A arte de drag evoluiu dentro da street art e da comunidade gay juntando movimentos elaborados e coreográficos como o voguing, que estão bem representados neste espetáculo por Dennis Correia. E onde há drag há música pop. O repertório desta encenação varia entre música renascentista, I Will Survive de Gloria Gaynor e ainda o Corridinho Algarvio. As músicas que exigem habilidades de canto lírico são celestialmente interpretadas por um coro de anjinhas cintilantes, cujas intervenções nos transportam para uma zona alegórica onde a cena adquire pontadas de ironia, fazendo da música um importante elemento da comédia.

O símbolo e a sua semiologia também surgem com um papel importante na construção dos universos criados por Ricardo Neves-Neves. No cartaz do espetáculo vemos uma peruca a meio caminho, que acentua a questão da ambivalência entre o real e fictício deixando espaço para uma variedade de entendimentos. O desdobrar de género de Violeta, interpretada pro Cristóvão Campos, entretém-nos com um jogo de dicotomias suscetível de dar um nó num enredo que por si só já é feito de encontros e desencontros: vemos um homem a interpretar uma mulher, que precisa de se disfarçar de homem e que se torna no interesse amoroso de uma mulher, por sua vez interpretado por um homem… Confuso? Não se preocupem, o texto torna este emaranhado simples. Apesar de ser Shakespeare, a escolha do texto recaiu sobre uma versão mais livre da métrica poética do verso. Ao deparar-se com a liberdade das traduções de António M. Feijó, Beatriz Viégas-Faria e Henrique Braga, o encenador encontrou legitimidade para criar livremente a sua visão do texto. “A expressão da palavra como se ela fosse gulosa na boca do ator”, disse-nos Neves-Neves referindo-se à importância da musicalidade na transição da palavra escrita para a palavra verbalizada.

Outro elemento que se tem revelado curioso na criatividade dos espetáculos do diretor do Teatro do Elétrico é a vida paralela para lá do texto ou seja, as possibilidades que surgem da subjetividade de leitura da escrita. No caso de Noite de Reis, o encenador encontrou uma certa tensão homoerótica e um companheirismo afetuoso, não propriamente declarados, nos diálogos entre duas personagens masculinas que lhe deram aso para explorar a possibilidade de uma relação.

Este espetáculo mostra-nos que a comédia não tem apenas a função de entreter aqueles que frequentam as casas de teatro, podendo também suscitar reflexão sobre questões em torno da androgenia e desmitificação de dogmas que estão em mudança na sociedade.

Para ver até 19 de Março na sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade de quarta a sábado às 21h e aos domingos às 16h30.

Ficha Artística e Técnica

De William Shakespeare
Encenação Ricardo Neves-Neves

Com Adriano Luz, António Ignês, Cristóvão Campos, Dennis Correia, Filipe Vargas, João Tempera, José Leite, Luís Aleluia, Manuel Marques, Marco Delgado, Rafael Gomes, Renato Godinho e Ruben Madureira

Direcção musical Mrika Sefa

Ensemble
Ana Cláudia Santos (flauta), Eliana Lima (Trompa e Acordeão), Filipa Portela (Soprano e Alaúde), Helena Silva (violino), Isabel Cruz Fernandes/Beatriz Ventura (Soprano), Juliana Campos (Fagote e Canto), Madalena Rato (Percussão), Mrika Sefa (Teclados), Rita Nunes/Nádia Anjos (saxofone), Sofia Gomes/Teresa Soares (Violoncelo), Rita Carolina Silva (Mezzo)

Versão dramatúrgica Ricardo Neves-Neves, a partir das traduções de António M. Feijó, Beatriz Viégas-Faria e Henrique Braga

Figurinos Rafaela Mapril
Assistente de Figurinos Elisabete Guerreiro
Assistente de Guarda-Roupa Inês Oliveira
Construção de adereços Lea Managil e Marisa Fernandes
Confecção Ana Baltar, Ana Santos, Ana Margarida Vieira, Cláudia Monteiro, Isabel Telinhos, Maria Afonso, Patrícia Margarida Silva
Cenografia Ana Paula Rocha
Assistentes de Cenografia Carolina Mendes e Ricardo Varela
Assistentes de Cena Carolina GonçalvesInês Oliveira, Marco Santos Ricardo Varela
Desenho de Luz Cristina Piedade
Coreografia Rita Spider
Maquilhagem e caracterização Dennis Correia
Assistente de caracterização Marco Santos
Sonoplastia Sérgio Delgado
Assistência de microfones PontoZurca
Vídeo Eduardo Cunha
Ilustrações José Cruz
Fotografia cartaz e spot TV Pedro Macedo/Framed Films
Fotografias de Cena Adriano Silva, Estelle Valente e Pedro Macedo
Vídeo Promocional Eduardo Breda

Assistência de Encenação António Ignês, Juliana Campos e Rita Carolina Silva
Apoio à dramaturgia Rita Carolina Silva
Comunicação e Assessoria de Imprensa TdE Mafalda Simões
Assistente estagiária de Comunicação TdE Ana Caetano
Produção TdE Andreia Alexandre
Produção Culturproject Nuno Pratas
Assistente Produção TdE Eliana Lima

Coprodução Teatro da Trindade INATEL, Teatro do Eléctrico, Cineteatro Louletano, Convento São Francisco e Culturproject

Apoios ao espectáculo Associação Mutualista Montepio, Antena 2, Fundação das Casas Fronteira e Alorna, Pecosita Pepito, Roca, Rumo do Fumo, Stannah, Watt- Electric Moving

O Teatro do Eléctrico é uma estrutura apoiada pela República Portuguesa – Cultura / Direcção Geral das Artes, pelo Cineteatro Louletano/Câmara Municipal de Loulé e pela Câmara Municipal de Lisboa / Polo Cultural Gaivotas | Boavista.

M14 / 120MIN

Apresentações

Em 2023:

Lisboa, Teatro da Trindade, 26 JAN a 19 MAR

Conversa com o público12 FEV, após o espectáculo;
AD e ILGP26 FEV às 16h30;

Coimbra, Convento São Francisco, 14 ABR
Reservas: 
239 857 191

Loulé, Cineteatro Louletano, 9 e 10 SET
Reservas: 
289 400 820

Mais informações em https://teatrotrindade.inatel.pt/espetaculo/noite-de-reis/ e https://teatrodoelectrico.com/noite-de-reis/



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