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38ºFestival de Almada: olhar de frente o colonialismo português

Na programação do Festival de Almada de 2021, sobressai uma dramaturgia portuguesa contemporânea que, de múltiplas perspetivas, e com diferentes vozes, dedica um investimento especial à experiência colonial portuguesa.

Imagine que o leitor é daqueles espectadores que quando pega no programa do Festival de Almada sente um prazer especial em alinhar espetáculos uns com os outros, colocando-os em diálogo, descobrindo possíveis conexões e articulações de sentido entre eles. Mesmo sabendo que a programação de um festival é também o resultado das contingências dos circuitos de teatro internacional, irá decerto sentir-se fascinado com o perturbante jogo de possíveis interpretações, que a programação do 38ª Festival de Almada pode proporcionar.

Uma dramaturgia portuguesa à flor da pele

Uma das primeiras linhas de força que se evidenciam é a de uma presença dominante da dramaturgia portuguesa mais recente, e aqui estamos a socorrer-nos do conceito mais largo de dramaturgia defendido por Joseph Danan na sua obra “O que é a dramaturgia?”, ou seja, tanto a que resulta da escrita de textos de dramaturgos como Rodrigo Francisco (“Um Gajo nunca mais é a mesma coisa”),  Miguel Fragata e Inês Barahona (“Fake”) e Joana Craveiro (“Viagem a Portugal”, como a que provém da transposição para cena de textos, como o “Discurso do Filho da Puta” de Alberto Pimenta por Fernando Mora Ramos e Miguel Azguime no Teatro da Rainha, ou a criação compartilhada de Rita Neves e Patrícia Couveiro, em Corpo Suspenso, ou ainda o trabalho de readaptação para duas irmãs que Carla Galvão e Sara de Castro fizeram a partir da peça “Duas personagens” de Tennessee Williams. E também a criação colectiva em “Aurora Negra”, de Cleo Diára, Isabel Zuaa e Nádia Yracema.

“Aurora Negra” – Fotografia de Filipe Ferreira

Olhar nos olhos o colonialismo português

Dos seis espectáculos que acabámos de referir, três deles têm por pano de fundo a guerra colonial:  Aurora Negra”, que “ conta, na primeira pessoa do plural, as memórias de mulheres negras no Portugal pós colonial e por descolonizar”, “Um Gajo nunca mais é a mesma coisa”, que vai ao olhar que os antigos combatentes têm sobre a guerra que travaram e “Corpo Suspenso”, onde duas mulheres, a propósito de reflectirem no corpo enquanto guardador de memórias, se perguntam sobre o que é que ficou da Guerra Colonial no corpo dos seus pais. É fascinante como três espectáculos autónomos conseguem trazer um desdobramento de pontos de vista sobre a experiência colonial portuguesa que integra o ponto de vista de pessoas afrodescendentes, a perspetiva de combatentes,  e o olhar dos descendentes de quem combateu. Isto sem contarmos com a possibilidade de na Viagem a Portugal, de Joana Craveiro do Teatro do Vestido, espectáculo que ainda não vimos, também poderem ressoar de alguma forma questões relacionadas com este tema, já que é sabido a intensidade com que o Teatro do Vestido tem dedicado àquilo que nas artes e na investigação se vem chamando pós-colonialismo. 

Em tempos onde as questões coloniais e do racismo tem servido para agitar bandeiras políticas, e também um ano depois de ter sido assassinado em plena luz do dia na capital o actor Bruno Candé, aparece como extraordinária esta confluência dramatúrgica nos palcos de Almada sobre o colonialismo português.    

Na programação do Festival de Almada de 2021, sobressai uma dramaturgia portuguesa contemporânea que, de múltiplas perspetivas, e com diferentes vozes, dedica um investimento especial à experiência colonial portuguesa.

A exuberante presença do feminino

E se agora voltássemos a baralhar e a dar novos sentidos à programação desta edição do Festival de Almada, encontrávamos um outro veio dramatúrgico para escavar: a forma como o feminino, e também as questões sobre o género, se expandem, quer nas equipas de criação, quer nos temas, quer nas figuras femininas.

Nos dias de Almada vão assim surgir em cena, em paralelo ou contraponto com homens atormentados pelo desamor, pela homofobia, pelo capitalismo,  Molly Bloom, Maria Callas ( com Mónica Bellucci, Norma B. ( em” Fake”) , as mulheres de Aurora Negra, as duas irmãs das Duas personagens, Fedra em Hipólito, esse olhar singular de Rebota, Rebota y en tu cara explota sobre a violência no corpo da mulher.

Em paralelo, é também marcante as questões de género, a homossexualidade, a homofobia, em espectáculos como “History of Violence” e , “Miguel de Molina al desnudo”.

Em tempos de pandemia dez criações internacionais

 

Desde há muitos anos que o Festival de Almada é um lugar de passagem de espectáculos relevantes da cena teatral internacional, com especial destaque nos últimos anos para o teatro europeu. Em 2021, tal como tinha sido há dois anos com o espectáculo onde Isabelle Huppert, dirigida por Bob Wilson, interpretava a personagem Mary Stuart, o CCB volta a receber o momento mais mediático do Festival, com o espectáculo de Tom Volf onde Monica Bellucci  dá vida à mítica Maria Callas.

Este ano há dez criações estrangeiras, que vêm de França (“Amitié”, “Omma”, “Maria Callas, Lettres e Mémoires”), Eslovénia (“History of violence”), Holanda (”Who Killed My Father”), Chile (“Tierras de Sud” com França), Bélgica (“Molly Bloom”),  Espanha (“Rebota, rebota y en tu cara explota” e “ Miguel de Molina al desnudo  e Brasil (“A Lua que vem da Ásia”).

Dentro destes também é possível encontrar uma linha dramatúrgica muito corrosiva, política, como os dois espectáculos que vêm de Espanha, e os dois construídos a partir dos textos de Édouard Louis (“History of violence” e “Who Killed My Father”), para além de Tierras de Sud, teatro documental sobre a violência que novas formas de colonialismo exercem sobre as populações e sobre os territórios da Patagónia.

 

Uma dramaturgia do corpo no espaço, a dança

Ao propormos, de uma forma quase obsessiva, uma leitura da programação do Festival de Almada 2021 a partir dos vários encadeamentos dramatúrgicos encontrados, deixámos quase para o fim dois espetáculos que constituem uma outra forma de pensar a linguagem, através do movimento, do corpo: “O canto do cisne”, criação de Clara Andermat ( a partir da obra A Morte do Cisne de Camille Saint-Saens), para a Companhia Nacional de Bailado, onde a coreógrafa revisita, com a equipa original,  a criação que fez para o Ballet Gilbenkian, em 2004 e “Omma”, do coreógrafo sérvio Josef Nadj, que este ano é o responsável também pelo Sentido dos Mestres, uma série de cinco encontros onde o artista refletirá sobre a criação deste espetáculo.

Hipólito e Lorenzaccio, duas encenações de Rogério de Carvalho

A abrir e fechar o festival, e num momento em que a Companhia de Teatro de Almada festeja o seu 50º aniversário, dois textos clássicos encenados por Rogério de Carvalho, grande encenador português que ao longo dos tempos tem tido uma colaboração muito próxima com a CTA.

Em “Hipólito”, de Eurípedes, uma produção da CTA estabelece-se uma curiosa interseção com a Fedra de Racine que o encenador dirigiu em 2006 para a Companhia: na equipa artística continuam o cenógrafo José Manuel Castanheira, a figurinista Mariana Sá Nogueira e os actores Teresa Gafeira e Marques Arede.

“Hipólito” – Fotografia de Rui Mateus

E em Lorenzaccio, de Alfred Musset, obra considerada irrepresentável quer pelas mudanças bruscas de lugar e o numeroso elenco, a encenação de Rogério de Carvalho, feita pelo Teatro do Bolhão em co-produção com o TN São João, encontramos também o actor Cláudio da Silva que Rogério de Carvalho  dirigiu no monólogo “Se isto é um homem”, da Companhia de Teatro de Almada, em 2019. Este espectáculo, sobre a cidade, é também uma peça sobre o poder, onde Musset entrou em diálogo com Hamlet e Júlio César de Shakespeare.  

Encontros na Cerca, Colóquios na esplanada e exposição 

Nas actividades complementares, destaque para os Encontros na Cerca este ano serão dedicados a revisitar os cinquenta anos da Companhia de Teatro de Almada, com quatro conversas ao sábado à tarde, às 15h, na Casa da Cerca, Centro de Arte Contemporânea. E, em parceria com a Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, os Colóquios na Esplanada, sempre às 18h, um conjunto de conversas com encenadores e criadores de espectáculos que passaram pelo festival.

No Foyer do Teatro Municipal Joaquim Benite, a exposição dos 50 anos da Companhia de Teatro de Almada, uma árvore com pessoas á volta, criada pelo cenógrafo José Manuel Castanheira, arquiteto, e um dos cenógrafos portugueses mais conceituados internacionalmente.  



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