“O Jovem” de Annie Ernaux
Relato intimista e despudorado.
“Se eu não as escrever, as coisas não se cumprem, terão apenas sido vividas.”
Se a capacidade de dizer muito com poucas palavras é um traço característico de Annie Ernaux, ela parece ter atingido um dos pontos mais altos em O Jovem (Livros do Brasil, 2023), testemunho autobiográfico de natureza tão breve quanto crucial na obra da autora, especialmente pela forma como aqui se entrelaçam algumas das suas obras anteriormente publicadas.
Ernaux nunca se restringe a falar só de um tema quando escreve e nas breves páginas deste livro, aborda uma miríade de assuntos ao recordar o relacionamento que teve aos 54 anos, com um estudante de origem humilde, trinta anos mais novo. Essa relação fá-la regressar a uma cidade do seu passado e ali, entre o entusiasmo do enamoramento, com os seus jogos de sedução e prazer, e os estigmas gerados pela diferença de idades e de posições sociais, é levada a refletir sobre a rapariga «escandalosa» que foi, menina da província, de um meio que já não é o seu e que agora, com estranheza, reconhece no outro.

Absorta pelo romance, Ernaux descreve: “O meu corpo deixara de ter idade. Era necessário o olhar fortemente reprovador dos clientes ao nosso lado, num restaurante, para ela me ser devolvida. Olhar que, em vez de me envergonhar, reforçava a minha determinação de não esconder a relação com um homem «que podia ser meu filho», quando qualquer tipo de cinquenta anos se podia exibir com uma que visivelmente não era sua filha, sem suscitar qualquer reprovação.”
Fazendo uso de um «descaramento» honesto que nos desconcerta, Ernaux aborda os preconceitos de uma sociedade conservadora face à diferença de idades desta relação, num cenário agravado pela questão de género, em torno da qual se alinham reflexões sobre o desejo feminino, a volúpia, o relacionamento entre pessoas de diferentes classes sociais, a passagem do tempo, a memória (individual e coletiva), a escrita e o papel da mulher nos anos 90.
Ao tornar-se protagonista da sua obra, e ao refletir sobre os contextos sociais que viveu mediante a ação da memória, Ernaux torna-se uma etnóloga de si mesma e conclui que não é tanto pelo que trouxe de novo, mas justamente pela repetição, que esta relação deixou a sua marca. Por fim, demonstra como a «novidade» dessa relação se foi anulando perante o tanto que vivera anteriormente.
Foto do artigo de Catherine Hélie Gallimard
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