Dança da Morte
Se queres esconjurar a morte, porque não danças com ela como nos tempos antigos?
A dança macabra dos tempos medievais tratava por tu e ritualizava a morte que assolava a Europa com a peste negra. Em dois anos desapareceu um terço da população europeia, ceifando a vida a qualquer um, sem atender ao estatuto, condição ou idade.
É essa dança que é agora recriada por Ana Zamora no espectáculo “Dança da Morte/Dança de la Muerte”, o novo espectáculo do Teatro da Cornucópia em co-produção com a Companhia espanhola independente Não D’Amores, uma estreia no Festival de Teatro de Almada, que estará em palco no Teatro do Bairro Alto até ao dia 13 de Julho e de 30 de Setembro a 17 de Outubro de 2010, depois de uma digressão pelos festivais espanhóis de Olmedo, Almagro e Gijón.
Tocando o sino e o tambor, a Morte, materializada numa caveira, brilhantemente interpretada por Luis Miguel Cintra, chama por todos aqueles que são condenados a ”nunca mais dormir nem acordar” e que, juntos, dançam e celebram a vida. Dança-se de sorriso rasgado e abraço aberto, em círculos e em cruz ao som da música daquele tempo, em castelhano e português arcaico. E no final, todos os felizes convidados pela Morte ingressam na sua Barca e entram numa nova viagem.
Entre os convidados, encontram-se o rei, o papa, o corregedor, o governador, o cardeal, o bispo, o cavaleiro, o padre cura, o lavrador, o mouro e o judeu. A solução cenográfica e de encenação é muito curiosa e original. As personagens desfilam e dançam o rito da morte, distinguindo-se pelo chapéu que escolhem usar no momento. A lição deste espectáculo é a “democratização da morte”, pois não importa o estatuto de uma pessoa em vida, a dança da morte chega a todos e une-nos a todos no mesmo barco e viagem.
O espectáculo começa com uma linda cerimónia dançada que relembra a Dança das Fitas ou do Mastro (Maypole dancing), cujas fitas escritas anunciam frases do Ofício dos Defuntos que Luis Miguel Cintra cita, com muita arte e excelente dicção.
Luis Miguel Cintra, além de exemplarmente personificar a Morte, representa também a Vida na pele dum velho guloso, que não só catrapisca o olhar com anónimas da plateia como namorisca, com ousadia e encanto, uma mulher extremosa e experiente, a quem confessa os seus íntimos desejos e anseios por delícias carnais, personagem feminina singularmente interpretada por Sofia Marques, uma actriz talentosa que tem uma viva expressão corporal e uma magnífica prestação teatral. Ambos interagem com o público, com habilidade e graça impar.
Elena Rayos tem igualmente uma boa performance e encanta com a sua expressividade no olhar e na voz. Sofia e Elena interpretam graciosamente as suas personagens, dançam, cantam e dão voz e alma a todos aqueles cuja sentença a Morte ditou. Há também um momento de humor por elas desempenhado com recurso a um apontamento de teatro de marionetas (sendo aqui a Morte bebé materializada na caveira a personagem principal) onde se ilustra e satiriza com a reprodução da própria Morte por toda a Europa.
Alguns músicos, além da sua excelente prestação musical e vocal, dão também corpo e movimento a alguma das figuras da feliz tripulação da Barca da Morte.
Esta peça é uma viagem rica ao passado, reflectindo o fenómeno artístico e social que este episódio na história representou e o fruto de uma profunda investigação de variada literatura medieval – textos de Gil Vicente e de Juan de la Encina, entre outros anónimos portugueses e espanhóis do século XV e XVI, misturados com o texto castelhano “Dança General de la Muerte” do século XV – e de canções, danças, ritmos e composições musicais dos séculos XIV a XVI sobre o tema das danças da morte, tudo fundido harmoniosamente numa só peça onde se cita o famoso Ad Mortem Festinamus do Llibre Vermell de Montserrat, a obra musical mais antiga registada sobre este tema e que reúne uma colecção de dez danças dos monges do mosteiro de Monserrate, em Barcelona.
Ana Zamora, dramaturga e encenadora deste espectáculo bilingue, convidou dois actores portugueses da Companhia do Teatro da Cornucópia, Luis Miguel Cintra e Sofia Marques, bem como Elena Rayos, actriz espanhola da Companhia Não D’Amores, e uma vasta equipa artística, como o coreógrafo Javier García Ávila, o cenógrafo David Faraco, entre outros, a trazer para os dias de hoje as célebres danças macabras, com interpretação musical ao vivo, usando réplicas dos instrumentos dessa época, executada por talentosos músicos: Eva Jornet na chirímia, flautas e cromorno, Juan Ramón Lara na viola de gamba e Isabel Zamora, no órgão.
Zamora convida-nos a reflectir e a despertar do “absoluto caos espiritual” que impera no mundo, a consciencializarmo-nos de que vida e morte são a mesma coisa, sendo essa consciência que nos define como seres humanos. “Falta no mundo de hoje espiritualidade que nada tem a ver com religião”, e que, naquele tempo, era algo tão natural como estas danças da morte.
É notável a estética da cenografia, figurinos e adereços. A sua arquitectura teatral, toda ela construída em madeira, bem como a estrutura da plateia sentada em “u”, em bancos corridos como sucede nas igrejas, transporta-nos ao ambiente conventual de uma Sala do Capítulo. É espectacular a presença cenográfica de uma enorme barca em madeira que se move subtilmente e facilmente em palco. Mais genial ainda é ser esta construção de madeira desmontável e o resultado plástico da união dos dois pequenos palcos de teatro e da orquestra das cenas anteriores. Também é de assinalar a beleza do chão axadrezado e colorido, inspirado quiçá no chão da Catedral de Segóvia. Quanto aos figurinos e adereços, é de realçar o cândido e apropriado manto da Morte bem como os trajes e chapéus, realçando, com distinção e louvor, o design artesanal criativo, feliz e belo dos vários “chapéus sociais” que ali desfilaram e abrilhantaram o mastro da Barca da Morte, permitindo-nos facilmente viajar até aos tempos medievais e acreditar que aquelas personagens já mortas, ainda vivem.
O desenho de luz, realizado por Miguel Ángel Camacho e Pedro Yagüe, está bem pensado e esteticamente apelativo, ajudando a densificar o ambiente em muitos momentos, sublinhando pormenores, expressões, adereços, instrumentos musicais e soluções de encenação.
Parabéns a todos, ao Teatro da Cornucópia, à Companhia espanhola Não D’Amores e ao Festival de Teatro de Almada!
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Morte e vida, mas não morte em vida. Para melhor a viver deve-se conhecer também o outro lado, respeitando-o, propiciando-o. Bom background e árduo trabalho de investigação a crítica, não era fácil ler as referências. Parabéns tb à Cornucópia por continuar a ser um espaço de mostra de outros teatros, em sincronia e diacronia.