“E a tua ferida, onde está?”
“Fim de Citação” do Teatro da Cornucópia, traz-nos, em forma de espectáculo, uma viagem, uma reflexão sobre o teatro e sobre o trabalho deste colectivo que, desde há 37 anos, é tido como uma das mais importantes referências do teatro português contemporâneo.
“Quando foram expulsos do paraíso os homens inventaram o teatro, esse paraíso temporário”, é a última citação deste espectáculo com que o Teatro da Cornucópia, mais uma vez, revela a paixão com que discute acaloradamente o ser e estar no teatro. Talvez por isso também o modo cuidado como trata o seu património artístico e o partilha com o público (primeiro em livro, agora no site).
A nossa história, a nossa memória também nos causa alguns engulhos. As cento e sete criações do Teatro da Cornucópia com incursões em grandes nomes da dramaturgia mundial de todos os tempos – e onde é impossível não destacar, entre muitos outros, a profundidade do trabalho realizado a partir de Strindberg, Bottho Strauss, Heiner Muller e Edward Bond – fizeram com que Luís Miguel Cintra seja frequentemente arrumado na divisão dos directores de reportório.
Ele está cansado disso, de ser arrumado em gavetas, quer surpreender. É uma vontade que ele já tinha confessado em Maio à Rua de Baixo, a propósito de “Miserere”, quando nos disse que tentava desesperadamente ”fazer um teatro que ainda tenha alguma capacidade de surpreender o público porque só isso o pode tornar político.”
Uma viagem por memórias que são afectos
Neste espectáculo Luís Miguel Cintra constrói um dispositivo narrativo em que, com um encenador, um actor, uma assistente de encenação e um contra-regra, consegue articular vários fragmentos de textos já trabalhados anteriormente.
Estamos nos ensaios de um teatro. O actor (Luís Miguel Cintra) passa grande parte do tempo em cima de um cubo, posando, com roupas e adereços diferentes. Este actor é tratado muitas vezes como um ser frágil. É caricaturizado, quase ridicularizado. O encenador (Luís Lima Barreto), a assistente de encenação (Sofia Marques) e o contra-regra (Dinis Gomes) vão conversando sobre o teatro, sobre os diferentes tipos de teatro, expondo também as relações entre eles. Dizem-se frases, mais ou menos bombásticas, mais para provocar sentidos (como o título desta reportagem).
Por causa do jogo de espelhos criado no palco, o público estará também reflectido em cena, criando um efeito de circularidade da acção teatral. Não só pelo espaço cénico. Os adereços e os figurinos também nos reenviam permanentemente para memórias de outros espectáculos. Estamos lá, através de um pequeno adereço que entrou em cena. Um texto que se disse. Nesse sentido é bem possível que “Fim de Citação” promova leituras muito diferentes conforme o grau de reconhecimento que o púbico tem com o universo do Teatro da Cornucópia.
Assim, ao verem que o encenador usa tampa de película como cinzeiro, os espectadores que seguem o grupo desde o inicio talvez se recordem que, por causa da proximidade do Teatro com um estúdio de cinema, eram utilizadas como cinzeiros as tampas velhas das caixas de bobines. Outros reconhecerão a cadeira de “A Tempestade” (2009), a Bandeira Petrificada da 2ª Versão de “A Missão” (1992), de Heiner Muller, a coroa de “Ricardo III” (1985), a enfermeira e o capuz do “Miserere” (2010), os espelhos, elementos cénicos recorrentes nas composições cenográficas de Cristina Reis, o urso de “O urso”, de William Walton e Paul Dehn, baseado na peça homónina de A.Tchekov (1990). Também reconhecerão textos de Garcia Lorca, Genet, Becket. Há também textos novos, como a conversa quase final entre o actor e o contra-regra, respigada de um fragmento de “O Canto do Cisne” de Tchecov.
Para a Cornucópia esta evocação não se pretende nostálgica, é afectiva, virada para a frente. O espectáculo revisita muitos modos de fazer teatro, os seus personagens falam muito, trazem todo esse corpo teórico que agitou o corpo teatral nos últimos cem anos, e aí há também lugar para um discurso auto-crítico que o grupo faz sobre o seu próprio trabalho. Como se lê em muitos textos que a Cornucópia tem escrito a acompanhar os seus espectáculos, para além do discurso teórico o essencial é este momento de transformação diante do público. O que fica do teatro, tanto para actores como espectadores, são as emoções.
“A sala tem o direito de ser louca. Devíamos poder sair”
É, como diz a companhia, um pequeno espectáculo, feito entre dois cometimentos maiores que a Cornucópia projecta para 2011, “A Cacatua Verde” de Schnitzler e “A Varanda” de Jean Genet, e que também abordam o teatro. Mas só é um pequeno espectáculo em extensão, se o compararmos com outros espectáculos da Cornucópia. Porque poderá ser alguma vez pequeno o gesto de uma Companhia que, ao fim de 37 anos de trabalho, se aproxima do seu patrimonio artístico e faz, com o (seu) público, um movimento introspectivo em direcção à capacidade de nos surpreender?
FIM DE CITAÇÃO
De Luís Miguel Cintra (a partir de Beckett, Genet, Garcia Lorca, Calderón, Kleist, Luiza Neto Jorge, Schnitzler, Shakespeare, Tchekov, Pirandello, Heiner Müller e Louis Jouvet)
Encenação : Luis Miguel Cintra
Cenário e figurinos: Cristina Reis
Desenho de luz: Daniel Worm D’Assumpção.
Actores: Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Dinis Gomes e Sofia Marques.
Teatro do Bairro Alto de 18 de Novembro a 12 de Dezembro de 3ª a Sábado às 21.30h e Domingo às 16h.
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