Marta Perez-Carbonell

“Nada mais ilusório” de Marta Pérez-Carbonell

Realidade e ficção: os dois lados do espelho

A escrita de um livro, de um romance, é muitas vezes um exercício que propõe, além de uma reflexão, a exploração dos limites da verdade e da própria memória. É esse o ponto de partida de Nada mais ilusório (Porto Editora, 2025), da espanhola Marta Pérez-Carbonell, uma estreia promissora no mundo dos livros e que pede que fiquemos muito atentos ao que se vai seguir.   

Tendo como cenário uma viagem noturna de comboio entre Londres e Edimburgo, é sobre os carris que o leitor é convidado a entrar num jogo cujas regras levam a enfrentar e distinguir o que é real e ficcionado, ficando refém de algumas pontas soltas que se vão (ou não) atando. E o facto de a narrativa evoluir num espaço físico (mas também emocional) fechado, como o é a composição de um comboio, adensa todo o mistério.

As páginas avançam à medida que a noite invade as janelas da carruagem. Numa delas, Alicia, a protagonista, partilha o percurso com dois desconhecidos: o escritor Terence Milton, acusado de trair um amigo ao usar, sem o consentimento desse, pormenores íntimos da sua vida num romance, e o seu amigo Bou. À medida que os diálogos evoluem, depois de uma breve apresentação, revelam e partilham-se traumas e questões não resolvidas que assumem a forma de fantasmas que alimentam reflexões sobre uma qualquer ética que pode ser aliada na transformação da vida real em pura literatura.

Enquanto Terence enfrenta suspeitas de traição, Alicia, vê-se arrastada para um turbilhão de memórias e dúvidas, questionando até as suas próprias recordações. Do lado de cá, como se de uma outra face do espelho se tratasse, o leitor é convocado a refletir: de quem são, afinal, as histórias? E onde se traça a linha entre inspiração e invasão?

As respostas são surgindo mediante capítulos curtos e uma escrita elegante e intimista, capaz de nos fazer, literalmente, sentir parte do dilema de Alicia, seja no papel de observadora ou atriz principal, que luta contra as deambulações da memória, mas que encontra nos discursos, ora controversos, ora misteriosos, de Milton, o desafio de reunir paralelos entre os três pilares que baseiam esta obra: a história de deste; a perspetiva da realidade do escritor e a própria vida de Alicia. Nessa viagem sem destino, a metáfora do comboio em movimento é sinónimo de episódios da vida marcados por saber que tem de se seguir em frente, mas o destino pode não ser o esperado. 

Também a construção dos personagens, independentemente da sua hierarquia na narrativa, ajuda a agarrar o leitor de forma muito competente, refletindo, com muita assertividade a complexidade do comportamento humano, dos relacionamentos e das tomadas de decisão, tendo em conta diferentes variáveis e pontos de vista, à imagem do que é a própria vida, que pode mesmo levar a que cada leitor assuma o que lê de forma interpretativa singular.

As pouco mais de 200 páginas deste romance, que se lê num suspiro e apaixona pela sua sinceridade e sensibilidade, refletem com intensidade o poder da literatura enquanto forma de pensamento, de entendimento e de subjetividade, mas, acima de tudo, leva-nos a mergulhar na complexidade daquilo que são as relações humanas e como as decisões e atos de terceiros, recheadas de elementos desestabilizadores como a traição, perda ou culpa, podem ser preponderantes e até decisivos nas nossas vidas. Resta-nos estar preparados para sentir os efeitos do bater das asas de uma borboleta distante.



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