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“Trilogia da paixão” de Ariana Harwicz

Coração selvagem

Logo na primeira frase do prefácio de Trilogia da paixão (Elsinore, 2025), Ariana Harwicz prepara-nos para o que aí vem. Regista a autora argentina, tida como uma das vozes mais disruptivas da literatura contemporânea, o seguinte: «Escrevi as três novelas com espírito de vingança».

Esta nota introdutória, em forma de aviso, refere-se ao trio de contos, inicialmente publicados entre 2012 e 2016, que compõem este livro que tem sido alvo de polémica, tendo mesmo o conto inicial, Mata-me Amor, levado a julgamento por parte de um juiz de província francês que considerou tratar-se de um «exemplo de como um livro em que a personagem odeia a maternidade faz da autora uma má mãe».

Harwicz defende-se, sublinhado, entre outros argumentos, que «escrever é opor-se ao mundo». E, de facto, ler os contos reunidos em Trilogia da paixão, é sentir essa oposição, ganha por direito próprio, mas também deixar-se levar por pensamentos fragmentados, ruturas com vários tabus, pesadelos que se podem tornar reais, diálogos alucinantes, mas, acima de tudo, uma poesia que abraça a mais íntima voz do feminino, da mulher que se, lá está, opõe, mas se expõe ao mundo, sem medo de julgamentos, seja eles num qualquer tribunal ou de quem lê.

No âmago dos três contos, definidos pela sua autora como «uma trilogia involuntária sobre a maternidade e os seus tabus», está uma “ela”, sem nome, quase anónima no seu sofrimento e forma de encarar a vida, seja face a um casamento em colapso e um filho recém-nascido, em confronto com uma figura maternal ou de alguém sem nome. A ligar tudo isso, está uma escrita direta, cortante, rebelde, dilacerante, violenta, muito violenta, mas apaixonante, onde os capítulos curtos assumem o papel de cortinas que se vão abrindo e mostrando o caminho para uma cena seguinte, onde a lógica é apenas a de escancarar o coração ao mundo, seja através do sussurro ou do grito.

Nesta literatura em estado bruto, acompanhamos três mundos. No primeiro, Mata-me amor, seguimos uma mulher que, isolada numa região rural com o marido e o filho pequeno, luta contra os fantasmas da maternidade e do desejo. A narrativa, como que à deriva de um fluxo de consciência, oferece uma voz furiosa que não pede licença, invadindo o leitor que serve de testemunha. Essa estética provocadora está também presente em A atrasada mental, levando a palco a relação entre uma mãe e uma filha cuja relação está marcada pela rejeição, desespero e impulsos quase suicidas. A linguagem é fria, por vezes suja e entre o poético e o violento, colocando o leitor à beira do abismo ético e moral, numa queda a pique entre o controlo absoluto e um assumido desnorte.

O conto que fecha o livro é outra aventura sem limites, sendo, talvez, o mais desconcertante e desafiador. Isto porque Precoce é alimentando por um amor entre uma mulher e um adolescente, relação essa que questiona todos os limites do socialmente aceitável, da moral e daquilo que definimos, com mais ou menos fronteiras, como afeto. As personagens são expostas como são, sem artifícios ou maquilhagens emocionais, assumindo-se cruas, mais ou menos vazias, mas possíveis, reais, desafiando a sanidade e a transgressão.

Já comparada a nomes como Sylvia Plath, Marguerite Duras ou Clarice Lispector, um notável elogio, Ariana Harwicz conquistou um lugar na literatura, um espaço onde, por meio de uma linguagem visceral e um coração assumidamente selvagem, promove narrativas que sangram, que provocam desconforto, abrindo portas para o poder da voz da mulher. Esta libertação, alimentado pela omnisciência do grito e da tensão, é o reflexo da urgência de demonstrar que a vida é também dor, e, no caso das obras da autora argentina, o objetivo não é procurar uma cura, mas antes mostrar as feridas. Se alguma vez vão sarar, não sabermos. Nem esse é o objetivo.



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