“Morte na Cornualha” de Daniel Silva
Picasso Papers
O sucesso da série Gabriel Allon tem valido a Daniel Silva milhões de vendas e o aplauso mundial dos amantes dos livros de espionagem baseados em várias camadas de suspense e ação, perfil muito associado ao universo cinematográfico. Mas, acima de tudo, o que sustenta as narrativas criadas por Silva são enredos extraordinariamente complexos, sempre atuais à data da sua escrita e bem sustentados no que toca à investigação geopolítica, não fosse o autor ex-jornalista especialista em política internacional e correspondente da UPI (United Press International) no Médio Oriente.
Nos livros mais recentes, Daniel Silva tem centrado muito das suas histórias numa nova ordem mundial encabeçada pela Rússia e consequente rasto de corrupção associada a Moscovo e ao seu presidente, o maior ator dessa forma de agir. Essa referência volta a estar patente em Morte na Cornualha (Harper Collins, 2025), o tomo mais recente das aventuras de Allon e habituais camaradas de armas e luta, e o 24.º da série protagonizada pelo agora menos ex-espião israelita e mais restaurador de obras de arte sob a forma de pintura.
E é mesmo o desaparecimento de um quadro famoso, no caso apelidado no circuito artístico mundial por “Retrato sem título de uma mulher, óleo sobre tela”, da autoria de Pablo Picasso, que está no epicentro deste livro, ainda que a narrativa acabe por derivar para outros caminhos relacionados com a corrupção associada aos negócios escuros de muitos milhões realizados com o objetivo de fugir ao fisco associada à compra/venda de quadros.
Tudo começa com a chegada incógnita de Allon a Londres para assistir a um evento oficial na Galeria Courtauld, a propósito da celebração da recuperação de um autorretrato roubado de van Gogh. No entanto, quando Timothy Peel, sargento-detetive polícia de Devon e Cornualha, e amigo pessoal de Gabriel, lhe pede ajuda para resolver um enigmático caso de homicídio, este envolve-se na perseguição de um perigoso adversário sem rosto.
O caso está relacionado com a morte de Charlotte Blake, professora de História da Arte na Universidade de Oxford, que tinha por hábito passar os fins de semana na mesma vila costeira onde Gabriel anteriormente residira sob uma identidade falsa. Ainda que a morte da estudiosa pareça inicialmente obra de um assassino em série conhecido por “o Lenhador”, algumas incongruências no caso, o desaparecimento de um telemóvel e uma misteriosa anotação com três letras deixada por Blake num caderno encontrado no seu escritório, fazem Allon pensar que algo mais pode estar por detrás do homicídio.
A investigação leva Gabriel a concluir que Charlotte estava à procura da referida pintura surrealista de Picasso, avaliada em mais de 100 milhões de dólares, que foi, como tantas outras, roubada pelos Nazis durante o Holocausto. Para recuperar a obra, e com a ajuda de alguns personagens muito presentes ao mundo de Allon, particularmente nos livros mais recentes, como, por exemplo, a violinista Anna Rolfe, a especialista em crimes informáticos e outros, Ingrid Johanssen e Christopher Keller, ex-assassino contratado e agora espião britânico, o israelita elabora um plano que implica a falsificação de seis telas impressionistas. A esse grupo improvável, juntar-se-ão figuras do passado, como o ladrão de arte, René Monjean, e novos aliados como o hacker Philipe Lambert.

Ao longo de uma trama assente, como habitualmente, em capítulos curtos e acelerados, Morte na Cornualha, leva o leitor a fazer uma viagem essencialmente passada em território britânico, ainda que com passagens por Itália (Veneza), Mónaco ou França (Ilha da Córsega). Fora desta geografia fica, talvez surpreendentemente, Israel, assim como qualquer referência ao Departamento, casa-mãe de Gabriel Allon durante décadas onde chegou a ascender a diretor.
Os momentos mais marcantes deste livro desenrolam-se entre as falésias da Cornualha, passando pela ilha da Córsega, culminando num desfecho emocionante nas proximidades do número 10 de Downing Street, sendo que esta última referência está diretamente implicada no ambiente eleitoral que se vive na capital inglesa, a braços com a suspeita de corrupção do governo.
Daniel Silva, consegue, mais uma vez, escrever um livro que explora temas pertinentes da atualidade através de uma narrativa envolvente, elegante e simples, falemos da influência destrutiva da riqueza extrema, da mercantilização da arte e da ubiquidade da crescente corrupção política através da lavagem de dinheiro, da evasão fiscal ou de esquemas que levam à criação de empresas-fantasma registadas em centros financeiros offshore que ajudam a esconder riqueza e a fugir aos impostos, uma realidade que faz um cerco às democracias e parece contagiar um planeta refém de conflitos políticos e sociais e a caminho de um qualquer fim.
Valha-nos a partilha do autor norte-americano de ascendência portuguesa, através da sua obra ficcionada, sempre assertiva e certeira, para ajudar-nos a refletir sobre esse jogo internacional de poderes e ganâncias que favorece sempre os mesmos e torna a sociedade mais pobre e cada vez mais descrente de uma classe política que tendo a fundir-se nas filosofias mais extremadas e sem um rumo que não seja proteger os seus interesses através da manipulação popular.
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