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O Caminho da Pena e o Caminho da Espada

De Kurosawa a Kobayashi. Tudo o que precisas saber sobre filmes de Samurais.

O samurai é sem dúvida uma das exportações mais bem-sucedidas da cultura japonesa; já faz parte do DNA pop-cultural mundial o conceito do nobre e solitário guerreiro, viajando de lugar para lugar com apenas uma espada como companheiro. Mas se para o público em geral o termo evoca a imagem duma cultura anciã e mística, a verdade é que no Japão a era dourada dos filmes de samurais serviu acima de tudo para questionar e deconstruir os mitos do seu passado. Nos anos sessenta, enquanto realizadores como Sergio Leone e Sam Peckinpah subvertiam a imagem tradicional do cowboy heróico servindo-se de realismo, niilismo e sátira social, nomes como Akira Kurosawa, Kihachi Okamoto e Makasi Kobayashi faziam o mesmo para o seu equivalente oriental.

Liçãozita de história

Comecemos pelo contexto. A noção do samurai tem uma longa história na cultura nipónica, mas a era mais focada nos filmes chanbara (ou, para dizê-lo em tom de Aleixo, “filmes de espada” – um estilo que inclui mas não se limita aos filmes de samurais) é a do shogunato Tokugawa, vivida sensivelmente entre os séculos XVII e XIX. Trata-se da maior fase de paz na história do Japão; trata-se também duma era em que a sua sociedade vivia num modelo estritamente feudal, sob um regime fortemente opressivo e com frequentes surtos de fome e pobreza. A organização social era para todos os propósitos medieval: a maioria da população vivia num estatuto de servidão, sob o jugo duma classe de donos feudais. Num tempo sem quaisquer confrontos militares, os samurais – a classe guerreira – manifestavam-se já como um anacronismo, simples parasitas do sistema sem função social discernível.

Se outrora os vassalos armados asseguravam a segurança do senhor feudal constantemente ameaçado por rivais bélicos, nesta fase de paz tornavam-se cada vez mais redundantes e dispensáveis. Sendo que os impostos e tributos exigidos pelo governo apertavam frequentemente os bolsos dos clãs, pouco espanta que houvesse um surto de despedimentos e abandonos. No cinema a figura do ronin (o samurai sem mestre) pode quase sempre atribuir a sua queda de estatuto à morte trágica dum mestre ou a uma intriga política maquiavélica, mas na realidade histórica as razões eram muitas vezes bem mais prosaicas. Mesmo assim, é fácil de entender porquê o ronin – o outsider por excelência, divorciado da sua função mas vedado pelo seu estatuto social de se integrar nas classes inferiores – é tão irresistível como arquétipo de anti-herói.

A manutenção desta sociedade tão divorciada das mudanças sociais que envolveram o mundo durante os séculos em que persistiu deve-se também a uma estrita política de isolacionismo. O comércio com outros países limitava-se a algumas fragatas em Nagasake; de resto, a entrada no país era vedada aos estrangeiros. O regime pregava sistematicamente a xenofobia, não só contra o Ocidente mas também contra os vizinhos orientais. O cristianismo, que tinha já atingido uma certa popularidade na população, foi proibido. Tudo isto acabou quando, em 1853, cinco navios americanos apareceram no porto de Edo (actual Tóquio), num gesto que obrigou as autoridades japonesas a ou abrirem as portas a um maior comércio internacional ou entrar num conflito bélico com os americanos. Uma vez que a posição do shogun já se encontrava de qualquer forma bastante fragilizada, optou-se pela segunda via – iniciando assim um processo de modernização que iria culminar com a extinção do seu regime. E com o shogun, desapareceram os direitos feudais – o que significou também o fim dos samurais.

Akira Kurosawa

Como seria de esperar, a imagem do samurai sobreviveu na literatura e no teatro. E mal o Japão tinha começado a experimentar com o cinema, surgiram os primeiros filmes com samurais. Mas o filme de samurais moderno tem uma origem mais recente, a qual é quase sempre reduzida a um homem – Akira Kurosawa.

Uma personalidade bastante contraditória, um humanista apaixonado por Shakespeare e John Ford que é frequentemente citado como o mais “ocidental” dos grandes realizadores nipónicos, mas cuja obra mostra um conhecimento e uma paixão profunda pela história do seu país, Kurosawa pode ser contado como um dos realizadores mais consensuais do século XX, com uma legião de fãs que inclui nomes como Francis Ford Coppola, Woody Allen e George Lucas. A sua obra inclui um grande número de filmes contemporâneos (normalmente mergulhados em cenários noir), bem como uma selecção ecléctica dentro do estilo do jidai-geki, o termo japonês para filmes históricos. No entanto, as suas obras mais emblemáticas pertencem ao mundo do chambara, e mais concretamente ao filme de samurais. Em 1954, Kurosawa (já conhecido internacionalmente pelo sucesso “Rashomon”) decidiu filmar a história de sete ronins que ajudam uma aldeia de camponeses a defenderem-se contra um bando de bandidos. “Os Sete Samurais” foi um sucesso estrondoso e lançou uma vaga de filmes semelhantes no cinema japonês, ao mesmo tempo que introduziu audiências ocidentais aos elementos do Japão feudal. Um épico de três horas que encontra o seu auge numa batalha pelo meio de chuva e lama, “Os Sete Samurais” mistifica sem dúvida as suas personagens, dando-lhes carácter heróico; mas introduz também um forte realismo, mostrando as condições de vida precárias dos camponeses e acabando com um discurso sobre a futilidade da vida samurai.

A atitude de Kurosawa perante o mito samurai tornar-se-ia cada vez mais cínica. Se “A Fortaleza Escondida” (1958) é um conto de fadas inocente o suficiente para inspirar o “Star Wars”, a obra de Kurosawa nos anos 60 mostraria uma visão mais sardónica. O seu companheiro em quase todos os filmes era Toshiro Mifune, um jovem actor que definia a dignidade silenciosa e a raiva febril que as audiências queriam ver num samurai. Entre 1954 e 1956, Mifune protagonizou a triologia “Samurai” de Hiroshi Inagaki, desempenhando o papel de Musashi Miyamoto, a maior lenda samurai da história japonesa (em parte porque tinha conquistado o seu lugar de origens humildes, um raro caso de ascensão social na era Tokugawa.) Quando portanto este símbolo da honra samurai adoptou o papel dum ronin completamente amoral em “Yojimbo” (1961), um filme realizado pelo mestre Kurosawa, o choque foi tremendo. Em “Yojimbo” não há heróis –apenas dois grupos de criminosos e um protagonista maquiavélico que se delicia em vê-los destruírem-se mutuamente. A atitude cínica e despretensiosa de Mifune em “Yojimbo” e na sua sequela, “Sanjuro” (1962) daria o mote para o questionar incessante do bushido (o código de honra samurai) que seria uma das marcas para o cinema chambara das próximas décadas.

A cena final de “Sanjuro”, um duelo que acaba com o vilão a perecer com um géiser de sangue a jorrar-lhe do peito, anteciparia outra característica do género – uma violência cada vez mais explícita e sensacionalista, que cedo deixaria os filmes de Kurosawa parecerem perfeitamente pacíficos.

A era do chambara

Os anos sessenta foram a era dourada dos filmes de samurais. Com a possível excepção do kaiju (filmes de monstros, uma vaga iniciada obviamente pelo venerável Godzilla), nenhum estilo era tão popular entre o público japonês como os duelos de espadas dos tempos passados. O chambara não se limitava aos samurais – uma sociedade já familiarizada com os conceitos de democracia e igualdade exigia também filmes de cunho mais working class. O maior sucesso de sempre do chambara por exemplo, é Zatoichi, um espadachim cego que caminha de aldeia em aldeia oferecendo os seus dotes como massagista. A personagem desempenhada por Shintarô Katsu em não menos de vinte e seis filmes, bem como uma série de televisão com mais de cem episódios, insere-se no sub-género do matatabi, filmes sobre pobres caminhantes que encontram perigos aonde quer que cheguem. Também populares nesta fase eram os filmes ninyko yakuza – os antepassados dos implacáveis criminosos modernos, foras-da-lei que pretendiam viver fora do sistema feudal e que criavam o seu próprio código de honra, não menos estrito ou complexo que o dos samurais.

Mas mesmo com esta concorrência, e com a partida de Kurosawa (que cada vez mais se distanciava do género), os anos sessenta foram incrivelmente férteis para o filme de samurais. O que se notava progressivamente era uma visão cada vez mais pessimista da era: abundavam filmes em que apenas o protagonista mantinha a honra num sistema corrupto que empunhava o bushido somente como retórica; surgiam até alguns que questionavam a própria validez do código de honra. Entre as vozes mais articuladas encontra-se a de Makasi Kobayashi: com “Seppuku” (1962), este explora a barbaridade do ritual suicida, enquanto que “Samurai Rebellion” (1967, com uma performance magnífica de Toshiro Mifune) é a história de como as intrigas da corte destroem a felicidade duma pequena família de samurais com baixa posição na hierarquia. “Sword Of Doom” (1965) de Kihachi Okamoto goza duma reputação esplêndida entre os entusiastas do estilo apesar de possuir uma estrutura confusa (trata-se da adaptação duma obra épica de Kaizan Nakazato, planeada como primeira parte duma série de filmes que nunca se materializou); o samurai principal, desempenhado por Tatsuya Nakadai, é um simples psicopata que mata por vaidade. Também da autoria de Okamoto é “Kill!” (1969), uma comédia com banda sonora à spaghetti western que o crítico Howard Hampton muito perspicazmente coloca como parente próximo de “Monty Python & The Holy Grail”. Mais uma vez, o papel principal pertence a Nakadai, desta feita na pele dum samurai desiludido que abandonou a sua função. “Kill or be killed – either one would just leave a bitter aftertaste” afirma este, numa elegante refutação do código bushido.

Se a negação dum sistema histórico já moribundo há mais de um século não parece grande coisa, é importante mantermos em mente o contexto histórico: nos anos sessenta, o Japão presenciava ainda um forte movimento de extrema-direita empenhando num regresso à “glória imperial”, uma corrente da qual o romancista Yukio Mishima era apenas o representante mais mediático.

Apesar do seu espírito rebelde, estes filmes contêm um certo grau de sobriedade, com grande atenção prestada à belíssima cinematografia in glorious black & white e um cuidado especial em representar situações historicamente viáveis. Mas rapidamente, o chambara iria avançar para terrenos mais febris, mais próximos do gore e do cinema exploitation dos anos setenta, com filmes a cores para melhor ver o sangue a espalhar-se. Uma das séries que pareceu apontar o caminho eram as aventuras de Kiyoshiro Nemuri, o infame samurai tuga. Filho dum padre português excomungado e secretamente satanista, que violou a sua mãe, Nemuri é uma personagem amaldiçoada, condenada pelo estigma do miscigenado e dotado dum ódio profundo e duma técnica de luta que lhe permite hipnotizar o adversário antes de desferir o golpe fatal. Ao longo de doze filmes, Nemuri – interpretado primeiro por Koji Tsuruta e depois por Ichikawa Raizo (“o James Dean japonês” segundo Lee Server) – Nemuri estabeleceu a ideia dum samurai completamente devorado pela luta, cujo dia-a-dia consiste quase exclusivamente de episódios de violência extrema. Ao mesmo tempo, da Europa vinham os spaghetti westerns, uma corrente que parecia levar o niilismo e a fetishização da violência a novos níveis. “Fistful Of Dollars” de Sergio Leone, o filme que lançou a explosão do spaghetti western, tinha sido um remake não oficial de “Yojimbo” – pouco espanta que a influência corresse também na direcção oposta.

“Goyokin” (1969), de Hideo Gosha, com mais lama que “Django” e mais neve que “Il Grande Silenzio”, responde à pergunta “o que teria acontecido se Sergio Corbucci teria realizado um filme chambara?” Um exemplo magistral do filme de samurais com influéncia spaghetti, “Goyokiba” é duro e cruel, mas ao mesmo tempo quase insuportavelmente lírico. Mais uma vez, o mito do samurai é deconstruído: um clã mata os habitantes duma aldeia inteira porque estes sabem que os samurais roubaram dinheiro dum navio naufragado, dinheiro este essencial para pagar os impostos a um governo sedento de tributos. Tal como em Corbucci, o subtexto marxista é fácil de apreender.

Baldes de sangue

No início dos anos setenta, o Japão encontrava-se numa situação conturbada: os protestos estudantis da década anterior tinham deixado marcas de caos no cenário político, abundavam os escândalos de corrupção e o país estava prestes a mergulhar numa crise económica. O zeitgeist exigia algo diferente do filme chambara convencional, mais raiva, mais sexo, mais sangue. Numa indústria cada vez mais ameaçada pela concorrência da televisão, a regra era recorrer ao sensacionalismo. E ninguém era sensacionalista com tanto brio como Kazuo Koike.

Certamente um dos nomes mais importantes na história do manga, Koike tinha passado a década anterior a criar aventuras soturnas, um pouco perversas e descomplexadamente violentas para um público de leitores ávidos. Sentindo o potencial comercial do artista, a indústria cinematográfica japonesa lançou-se numa vaga de adaptações das suas obras. Primeiro veio “Sword Of Vengeance” (1972), em que Tomisaburo Wakayama (irmão de Shintarô “Zatoichi” Katsu) encarnou a mais famosa criação de Koike, Ogami Itto. Protagonista da série “Lone Wolf & Cub”, Itto é um ronin desgraçado que oferece os seus serviços como assassino profissional, acompanhado sempre pelo seu pequeno filho Daigoro. Com uma carrinha de bebé equipada com armas de fogo e mais angústia existencial do que mil Humphrey Bogarts, a série “Lone Wolf & Cub” foi um sucesso estrondoso. Rapidamente seguiram-se mais adaptações de Koike: “Lady Snowblood”, protagonizada pela carismática Meiko Kaji, usava o seu enredo duma espadachim sedenta de vingança para passar subtextos de solidariedade para com o movimento esquerdista japonês, enquanto que Katsu aproveitou talvez a criação mais bizarra de Koike nos três filmes de “Hanzo The Razor”. Hanzo, uma espécie de Dirty Harry do Japão feudal, é um agente da lei frustrado pela corrupção das autoridades e empenhando em trazer a justiça sem olhar a meios. Mais bizarro ainda que a banda sonora blaxploitation dos filmes é a dimensão sexual da personagem – Hanzo “interroga” invariavelmente as núbeis suspeitas oferecendo-lhes prazer com o seu “enorme membro” (a proeza deste é referida até mais não nos filmes), altura após a qual estas magicamente se viram para o lado do bem e lhe ajudam a capturar os vilões. O primeiro filme Hanzo, “Sword Of Justice” (1972) possui um misto alucinante de acção, crítica social, humor negro, perversão sexual, Funk e momentos puramente WTF. Infelizmente as sequelas – mais claramente exploitation – não conseguiram manter o charme bizarro dum filme que passa de pseudo-violações com intuito cómico para crónicas trágicas da pobreza nas cidades como se nada fosse.

Com o avançar dos anos setenta, o chambara foi perdendo adeptos. Monstros gigantes, banhos de sangue yakuza em cenários modernos e pornografia softcore apelavam mais ao espírito dos tempos do que samurais solenes. Quando o interesse pelo período Tokugawa se reacendeu nos anos oitenta, os protagonistas não eram espadachins mas sim os ninja, personagens sorrateiras especializadas no tipo de jogo sujo que estava interdito aos samurais. Hoje em dia, a figura do samurai – tal como a do cowboy nos Estados Unidos – é uma parte do ADN pop-cultural colectivo tão omnipresente quanto saturada. Como tal, o estilo chambara sobrevive nem tanto como género autêntico e mais como ponto de referência para tributos e paródias – apontem-se sucessos recentes como “Samurai Fiction” (1998) de Hiroyuki Nakano e o esforço de Takeshi Kitano em trazer de volta a personagem de “Zatoichi” (2003.) Outra tendência, representada pelos filmes Azumi, consiste em transferir o jogo de espadas para um cenário assumidamente fantasy. Mas se os velhos samurais não voltam, há um espólio considerável de obras a investigar – porque nunca perde a piada ver dois homens em roupões a trocar golpes.



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