Pão
O descascar da famosa «faixa 21» e o discurso directo de Travassos, Tiago Sousa e Pedro Sousa.
Citemos, antes de mais, o site Culturaonline: “Juntos, Travassos, Pedro Sousa e Tiago Sousa exploram uma música contemplativa, de desenvolvimento lento. Submergindo nas águas profundas do drone, o trio embarca numa viagem sem destino certo: o saxofone de Pedro Sousa mantém um som contínuo; Tiago Sousa (teclado, harmónio, percussão) desenvolve ambientes fantasmagóricos; Travassos (electrónica analógica) alimenta uma sombria neblina. E a tensão, imensa, vai crescendo.”
É certamente uma descrição linear da «faixa 21» dos Pão. Basta ouvir os 15 minutos de ensaio geradores daquilo que ficou baptizado na web como «faixa 21» para perceber que a descrição encaixa na perfeição.
Mas descasquemos um pouco mais a famosa «faixa 21». Arranca com o zumbido de um saxofone por Pedro Sousa, “o soldado desconhecido”, que por sofrer de um mal comum de que sofremos muitos de nós com nomes comuns, pelo nome só não se encontra nada na já incontornável fonte de informação universal, a Net. Mas diz-se dar cartadas no sax tenor. E parte neste voo circular zumbindo irregularmente até estabilizar em 3 notas sobre as quais faz experimentações sobre a vibração de notas longas. E continua voando e zumbindo sobre o tapete sintético e analógico de Travassos. José? Jorge?, “o Homem que Come Fios Condutores ao Pequeno-Almoço”. Dr. Strangewire grava tudo o que o ouvido humano pode ouvir e muito mais. Depois destrói-o e reconstrói-o. Na mesa ao lado transforma impulsos eléctricos em oscilações de sinal, traduzidas em vibração simulada electronicamente que gera por fim som sintetizado ao estado mais puro e elementar, que, uma vez infiltrados numa rede de circuitos lógico-electrónicos se desmultiplica em inúmeras possíveis metamorfoses criando assim, e finalmente, um novo som. Um som nunca antes escutado pelo ouvido humano, por quanto infinitesimal possa ser a distância de um outro som a ele parecido. Funde-os numa textura de rede sonora irregular e difunde-os pelo resto da música, que entretanto ganhara uma cor harmónica desenhada pelo harmónio de Tiago Sousa, “o tipo do piano”. Ou, para muitos, “o que toca música”. E no entanto, ao contrário da tendência dos projectos de Tiago Sousa, em particular no seus projectos a solo, aqui o pianista rege-se pela descrição e contenção. Desenha com o harmónio sinais de paisagem sonora, articulando acordes como planos de fundo desfocados e ocasionais da sequência animada cíclica em primeiro plano do saxofone. Mas, apesar de desfocado e em segundo plano, fundamental na sugestão implícita de paisagens e imaginários à mente que escuta.
Criam-se por si as condições acústicas e mentais para o embarque numa “viagem sem destino certo”. A ausência de um compasso regular de frequência suficientemente alta para ser percebida como tal ao ouvinte cancelam neste a referência temporal. Enquanto as vibrações insistente e irregularmente repetidas no saxofone e sintetizadores sugerem referências espaciais diferentes das imediatamente percebidas pelo ouvinte no local onde se encontre. Sem referências tempo-espaciais fortes, a mente humana naturalmente procura a referência no único ponto que lhe resta claramente definido no universo espaço-tempo, isto é, ela mesma. Emergindo assim numa viagem introspectiva. “Sem destino certo.” Provavelmente sem rumo. E como paradoxalmente a mente humana mais dificilmente se perde na viagem ao mundo exterior, que na viagem em si mesma, inevitavelmente sucede que terminam os 15 minutos de ensaio dos Pão, ou a (famosa e única) «faixa 21», perguntando-nos em silêncio: “Ora onde é que eu ia?”
São estes raros e deliciosos momentos de nós mesmos, que podem ser vividos apenas por nós mesmos, mas podem ser induzidos e provocados, por qualquer outra pessoa. É o que esta tripla fonte experimental e criativa faz de “profissão”, toca música para viagens introspectivas.
A ver, ouvir e experimentar em breve num teatro perto de si.
Entrevista aos Pão
Que artista mais te influencia na tua música ou na tua forma de tocar e qual o artista preferido, proveniente de um género musical ou um instrumento diferente do teu?
Tiago Sousa – Julgo que um sinal de maturidade artística é aperceberes-te que apesar das diversas sensibilidades estéticas surtirem um efeito em ti, seja positivo ou negativo, não devem ser castradoras da tua própria afirmação identitária. Antes de tentarmos seguir um artista que num determinado momento nos toca, devemos procurar em nós o que é o fundamento das idiossincrasias que nos formam e através desse processo chegar a novos patamares.
Travassos – Quando era adolescente tinha uma maior predilecção em procurar ídolos e influências, como é natural que assim seja. De momento não considero que tenha um artista preferido ou um que me influencie de forma directa e absoluta. Passei boa parte da minha vida madura em lojas de discos e portanto rodeado de milhares de propostas diferentes. Apesar de actualmente estar mais focado nos campos do Jazz e da música improvisada, sempre gostei de qualquer género de música (com excepção da grande maioria da pop que é uma verdadeira seca), e por isso creio que as influências acabam por vir e por se formar de todos os lados. Aliás sempre procurei, na música que faço, não copiar os outros mas sim trilhar o meu próprio caminho, a minha sonoridade e o meu estilo, seja lá o que isso for.
Pedro Sousa – É difícil assinalar um ou outro artista em particular visto que as minhas influências são vastas. O saxofone nem foi o meu primeiro instrumento, nem será o último, e gosto igualmente de ouvir música improvisada como electrónica (nas suas mais variadas formas, desde jungle até drone e noise), hip-hop, clássica, rock e afins. Tenho progressivamente abolido muitos preconceitos que tinha com este ou aquele género, ou esta ou aquela sonoridade e isso tem-me dado capacidade de claramente delinear o meu gosto musical. A realidade é que me sinto uma amálgama de tudo o que oiço, mesmo que seja mais directamente influenciado por este ou aquele saxofonista de momento.
O que mais pode influenciar a tua disposição criativa na tarde antes de um concerto?
Travassos – Creio que qualquer acontecimento adverso que seja considerado grave ou perturbante pode causar desvios na tua concentração. Para mim, por exemplo, se tiver um dia de trabalho mentalmente exigente é óbvio que não sinto o mesmo tipo de descontracção ou serenidade do que se tivesse estado o dia inteiro, ou parte dele, concentrado no concerto.
Pedro Sousa – A música improvisada exige bastante concentração para se estar consciente da trilha sonora que se está a construir em tempo real. Naturalmente que qualquer coisa que interfira é potencialmente prejudicial. Pessoalmente, no entanto, o que mais me aflige são as questões técnicas que poderão surgir com o meu instrumento, mesmo quando roça a paranóia. Como por exemplo, quando tocava mais electrónicas, ter medo que alguém me puxasse o cabo de alimentação, ou por um qualquer ataque repentino de estupidez eu carregasse no único botão que não poderia ser premido. No caso do saxofone visto que ele tem uma particularidade física bastante pronunciada, basta por exemplo estar fisicamente cansado ou com o lábio rasgado para complicar o acto de tocar e como tal interferir com o processo criativo. Fora isso, tudo o que vier à rede é peixe.
Conseguem explicar de forma simples e resumida ao nosso público como se processa o trabalho criativo de composição? De quem parte a primeira ideia geralmente (Sax, Piano, Electrónica)? A estrutura de um tema (a «faixa 21» por exemplo) é criada num take único de gravação com os três elementos ou as ideias vão surgindo pouco a pouco e acrescentadas ao tema inicial?
Travassos – Os Pão são um processo centrado na improvisação. E tendo em conta esse factor determinante – geralmente não temos ideias predefinidas, nem qualquer tipo de estrutura previamente delineada.
O que faz a diferença nestes contextos é a quantidade de vezes que ensaiamos. Aí conseguimos apreender as linguagens, as reacções e as dinâmicas do outro de modo a conseguirmos estar em consonância musical. É sobretudo um fenómeno de concentração, fruição e partilha que se vai apurando com a experiência.
Quanta da vossa música ao vivo é reprodução e quanto é improvisação?
Travassos – A nossa música é totalmente improvisada. Contudo existem fórmulas e momentos que tendem a assumir contornos semelhantes. Ou seja, tudo o que nos agrada esteticamente, que é conseguido durante os ensaios, é passível de ser aproveitado e de servir como ferramenta orientadora ou reorientadora da direcção musical durante um concerto. De qualquer maneira, estando a improvisar, há sempre uma grande dose de imprevisibilidade.
Quem é o vosso público? Como o vêem? E que “tipologia social”, se alguma, não é fã dos Pão, segundo os próprios?
Travassos – O público dos Pão pode ser qualquer pessoa que goste de música e que tenha abertura suficiente para embarcar em novas experiências. Mas grosso modo poderia classificar o nosso público da seguinte maneira: os nossos amigos + 6 curiosos + 4 indies descontentes + 3 hypsters mal informados + 4 desconfiados + 6 que percebem “whats going on” + 3 cansados de jazz…. o resto é uma incógnita.
Acham que vivem no melhor ou no pior dos tempos para se fazer música em Portugal? E em particular, o download livre e gratuito segundo os Pão é legal ou ilegal?
Travassos – Estamos a viver em Portugal um momento bastante fértil da criação musical, que se reflecte em todas as áreas. Tanto porque músicos que andam a trabalhar insistentemente as suas linguagens há alguns anos estão a ver o seu trabalho ser reconhecido e apreciado, em território nacional e internacional – como pelo aparecimento de novos músicos com um valor muito acima da média.
A grande novidade e valia aqui é que músicos de várias correntes e gerações têm cada vez mais vontade de cruzar estéticas, de partilhar e de aprender com os outros. É destes cruzamentos que nascem coisas novas e frescas que de alguma forma empurram e fazem avançar o panorama da música.
Para isto têm contribuído uma série de pessoas e de estruturas que estão mais sólidas e sérias – como é o caso dos Filho Único, da ZDB, da OUT.ra, da Lovers & Lolipops, do Bodyspace, da Trem Azul/Clean Feed, da A9, da Creative Sources, da Matéria Prima, do Miso Music, do Rescaldo, da Granular etc… etc… – bem como instituições como a Culturgest, Casa da Música, Teatro Maria Matos, Gulbenkian ou Serralves etc…
O download gratuito só é legal ou ilegal consoante a forma como se posiciona a questão. Uma banda pode querer fazer música só como um hobby e não ter qualquer intenção de cobrar dinheiro sendo o seu objectivo a partilha, ou outros que querem expor e partilhar uma parte do seu trabalho com o intuito de se darem a conhecer e promover – aí sim o download é legal porque tu assim queres que seja.
Agora quando tens estruturas de pessoas a trabalhar (dependentes desses ordenados) com a finalidade de introduzir o teu produto no mercado da melhor forma possível, como é o caso de centenas de editoras espalhadas por esse mundo fora que têm feito trabalhos notáveis pela promoção dos músicos e da música – ai sim é ilegal e uma verdadeira injustiça.
Se estivessem perante os líderes dos principais cinco partidos políticos Portugueses, e tivessem convosco apenas quatro CD’s com a vossa música, a quem não ofereceriam o disco?
Travassos – Não ofereceríamos a nenhum deles pois seria uma grande perda de tempo e de recursos. Nenhum se daria ao trabalho de ouvir e se porventura algum o fizesse jamais o iria entender. Esses tipos andam a milhares de quilómetros de certas realidades.
Fotografia da autoria de Vera Marmelo.
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