Sentinela
"Manual de Cerimónias", álbum de estreia de Sentinela.
Há muito tempo que não ouvia um álbum de hip-hop até ao fim. Na verdade nunca ouvi. Mas… ”na paz” é o espírito de Sentinela. É o meu também, porque pecado maior é nunca ter ouvido verdadeiramente hip-hop e continuar a catalogar, rejeitar, ou simplesmente não conhecer. Outra verdade, já que falamos de um género que as diz na cara, só ouvi o álbum porque me chegou às mãos físico, produzido e com muito bom aspecto, devido à teimosia profissional de Rui Gomes, Sentinela.
Um álbum que é, por um lado, o esclarecimento e visão da cultura hip-hop, o trabalho de Sentinela, MC e Bboy, e a experiência de vida de Rui Gomes que vive com o peito aberto aos ritmos do hip-hop intensamente desde os 15 anos e às experiências de vida que o fazem aos 29 realizar-se e hoje apresentar, sem cerimónias, e com alguma carolice, o seu manual.
Para começares então a saber, isto do hip-hop “são quatro vertentes” mas não é só isso “isto é cultura para toda a gente”. É assim que Sentinela canta as rimas do primeiro single «São Quatro Vertentes». E é nesta lógica esclarecedora e sem rodeios que nos apresenta, numa entrevista/conversa, o primeiro trabalho a solo.
Quem é Sentinela PSA?
É o MC da Póvoa de Santo Adrião, subúrbio de Lisboa, assumido mas não excluído porque dá uma entrevista como esta em Alfama ou na Graça. É Rui Gomes enfermeiro no Hospital Pulido Valente, que tem sido uma grande experiência de vida e são essas experiências que nos fazem mais pessoas e é isto que eu procuro na vida acima de tudo. Assumi-me como Sentinela perto do ano 2000 mas o meu interesse pela cultura hi-hop começou aos 15 anos, nessa altura ligado ao graffiti, como writter.
Como começou a ideia do álbum?
Eu já tinha formado um grupo de rap com dois amigos, o Protocolo Experimental, onde fazíamos os nossos próprios instrumentais, gravávamos as nossas próprias cassetes e brincávamos muito com as rimas. Tudo se tornou mais sério em 2003. Lançámos o EP de edição independente, gravado no estúdio Garagem 22 no Feijó. O EP teve um bom feedback, foi considerado pela Hip-hop Nation, uma revista da especialidade, o melhor álbum de edição de autor de 2003. Fizemos algumas actuações ao vivo, mas a banda desintegrou-se especialmente quando um dos membros, o Hélder, MC Paranóia, foi viver para Londres.
Continuei sempre a viver a cultura hip-hop mas na atitude de apreciar e desfrutar.
Em 2007 pensei que se vivia a cultura hip-hop tão intensamente, que fazia sentido ter o meu próprio caminho e comecei a gravar o meu álbum a solo. De 2007 a 2011, uma produção gravada por Maf, na Subcave, estúdio dos Guardiões do Subsolo e masterizado por João Ganho, no Ganho do Som.
Porque sabemos tão pouco do hip-hop?
O modo como vives as coisas não é para te promover mas para te realizares, e foi nesse sentido da auto-realização que construí este trabalho. E isso é em si a cultura hip-hop, que tem como elemento identitário a independência dos autores. Às vezes acabas por te auto-marginalizar no sentido de, como és independente e não te misturas com a indústria, acabas por trilhar um caminho muito teu, muito próprio.
Por outro lado a indústria musical não abre muitas portas para o que se faz no hip-hop, porque a indústria prefere produtos formatados e não dá muita abertura para aceitar novas sonoridades, ideias, projectos.
O hip-hop muitas vezes ainda fica só destinado a um público muito especifico. E acho que o desafio é esse: quebrar barreiras.
A ideia do disco é precisamente quebrar barreiras porque eu me revejo nessa atitude. O disco não é afinal mais do que aquilo que eu sou, do que eu penso e do que eu vivi mais ligado à cultura hip-hop e ao rap mas também nos aspectos gerais da vida, do que marca, que eu sinto.
Também há uma certa necessidade de esclarecimento da cultura hip-hop, fazer um pouco o uso pedagógico da palavra. Porque afinal o rap é o uso da palavra, o dom, o poder, e eu faço-o num uso pedagógico a fim de tratar os bois pelos nomes e esclarecer o que caracteriza a cultura hip-hop. Sobretudo nos dias de hoje, porque às vezes ligas a MTV, vês alguns vídeos e questionas-te, mas isto é rap?
Na minha óptica e aprendizagem da cultura hip-hop isso para mim não faz sentido nenhum por isso sinto essa necessidade de mostrar a minha óptica, o meu conhecimento e o que me faz viver esta cultura com esta intensidade.
É uma cultura urbana ou sub-urbana, uma maneira de viver e quando te vinculas, entregas-te a ela de duas formas, ou como espectador ou fazes um trabalho criativo à volta disso de acordo com as tuas potencialidades, eu encontrei-me no MC.
MC, DJ, Writer, Bboy
No vídeo de estreia, «As quatro vertentes», está a explicação das quatro vertentes mas também a necessidade de mostrar a minha zona. Isso é também a forma como as pessoas vivem o rap, tem uma parte sempre muito territorial, o sítio onde estás e o sítio que representas. Eu mostrei a Povoa de Santo Adrião dizendo claramente a minha zona é esta, é daqui que eu vim, eu sou isto, é o meu cartão-de-visita. É a minha mensagem de dentro, de onde eu vim, para fora, para que as pessoas entendam a cultura no geral.
Isto é o País do Fado
Eu gosto particularmente deste conceito do bairrismo e a minha mensagem é também vive a tua zona, exerce a tua cidadania no sítio onde tu vives, seja qual for o bairro, porque os bairros acabam por se ligar.
No disco também falo da nossa identidade enquanto portugueses.
Em «Isto é o País do Fado», com voz da fadista Vânia Conde, há uma mistura do rap com o fado e retrata as características de nós enquanto povo e por outro lado tem uma abordagem irónica sobre esse mesmo aspecto.
Amor e Banalidades
O álbum é por um lado o modo como vivo a cultura hip-hop. Por outro, o meu sentido de intervenção sobre a realidade, por outro sobre as experiências de vida que me marcaram e que eu quis substanciar em palavras. Fala-se de amor em «Pensa em Nós Dois», com a voz de Tamin, e de em Banalidades, que são ao fim de contas, as minhas banalidades, quis-lhe dar voz porque acabam por ser a essência da vida.
As sonoridades presentes no álbum
As sonoridades do álbum, sendo um álbum de rap, vai buscar várias ambiências musicais e isso é o que acaba por abrir as portas do rap a outras pessoas. Por um lado a mensagem, por outro a ambiência e diversidade musical que se cria, enriquece o teu trabalho e enriquece a experiência de quem está a escutá-lo.
O álbum físico: Manual de Cerimónias
O processo só fazia sentido se eu materializasse o meu trabalho. É afinal o teu filho, tu vê-lo e tem-lo nas mãos, daí que não o possa apenas disponibilizar em formato digital.
O design gráfico é feito por Phomer, o scratch de DJ Nelassassin, e há várias participações e visões que nem sempre são iguais mas que enriquecem o álbum.
Este trabalho é o meu “Manual de Cerimónias” e espero que para quem o escute de alguma forma sirva de manual de cerimónias no sentido de perceber a minha visão da cultura hip-hop e da vida e como sinto as coisas. Como as transformei em palavras. É este manual que até aqui foi a minha vida, o que senti e o que me orientou na vida até aqui.
Fotografias por Ana Jerónimo
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