Cinema blaxploitation e filosofia afrofuturista sob o olhar queer na Cinemateca Portuguesa

O AFRICA.CONT/CML e a Associação Cultural Janela Indiscreta, responsável pelo festival de cinema Queer Lisboa, levam até à Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, à Galeria Zé dos Bois, ao c.e.m. – centro em movimento e ao Fontória Blues Caffee o ciclo “Are you for real?” Uma viagem Afrofuturista do Blaxploitation às Utopias Queer Visuais e Sonoras, com a apresentação de filmes, instalações, performances,workshops de voguing, de um livro e a presença de convidados internacionais. De 4 a 11 de julho este ciclo, com curadoria de Pedro Marum e Ricke Merighi, pretende olhar para o movimento cinematográfico blaxploitation e para a estética e filosofia afrofuturista, que teve no músico Sun Ra (1914-1993) um dos seus expoentes máximos, sob uma perspetiva queer, explorando questões ligadas à raça, género e sexualidade.

É, por isso, incontornável que esteja integrado neste programa o filme Space is the Place(1974), que será exibido na Noite de Abertura, a 4 de julho. Esta longa-metragem de John Coney, com argumento e banda sonora do próprio Sun Ra, é ainda nos dias de hoje uma obra anómala. Filme de ficção científica que ao espelhar a dimensão filosófica inerente à música e figura de Sun Ra cruzou estéticas díspares e ganhou um poder também ele político. Sobre o mesmo músico será ainda exibido Sun Ra: Brother from Another Planet (2005), de Don Letts. Documentário produzido pela BBC, contextualiza a obra que Sun Ra nos deixou e as suas repercussões até ao século XXI. Integrada neste ciclo está ainda a instalação A Joyful Noise (1980), da autoria de Robert Mugge, da qual fazem parte imagens de atuações de Sun Ra com a sua Arkestra, bem como entrevistas e registos de ensaios.

Marcado pela filosofia afrofuturista, faz ainda parte deste ciclo Born in Flames (1983), um filme de culto feminista, realizado por Lizzie Borden. Esta longa-metragem de ficção científica explora o racismo, o classismo, o sexismo e o heterossexismo num futuro alternativo.

Sun Ra é ainda referenciado em The Last Angel of History (1996), de John Akomfrah, filme que nos leva numa viagem de África à lua e retorno, estabelecendo diálogos entre grandes viajantes da música e da literatura dos nossos tempos, como Nichelle Nichols, George Clinton, Lee Perry, Goldie e os Underground Resistance.

Em grande destaque estará a obra do cineasta britânico Isaac Julien. Com uma obra que cruza diversas disciplinas artísticas, tendo ainda este ano marcado presença na 56.ª Bienal de Veneza, serão recuperados vários títulos do artista britânico, entre eles BaadAsssss Cinema(2002), documentário que explora o movimento blaxploitation, a sua influência e repercussões políticas. Serão ainda exibidos Territories (1985), documentário experimental sobre o carnaval de Notting Hill, Londres, e os conflitos entre a autoridade “branca” e as juventudes “negras”; The Attendant (1993), onde um quadro num museu dedicado à história da escravatura acaba por ganhar vida própria; Darker Side of Black (1994), filme que propõe uma investigação inteligente e provocadora das complexas questões levantadas pelo género, incluindo a ritualização do machismo, a misoginia, a homofobia e a glorificação das armas nos contextos musicais e sociais do rap e do reggae, de Londres aos Estados Unidos, passando pela Jamaica; e Young Soul Rebels (1991), história de uma relação entre um DJ “negro” e um punk “branco” que enfrentam o duplo preconceito do racismo e da homofobia em plena semana do Jubileu de Prata da rainha Isabel II.

Se no documentário BaadAsssss Cinema Isaac Julien analisa o blaxploitation, este ciclo propõe uma série de filmes marcantes deste movimento. É o caso do aclamado Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971), de Melvin Van Peebles, que inaugurou uma nova era de filmes centrados nos afro-americanos. Este foi um filme que conferiu, de forma inédita, subjetividade aos personagens negros, permitindo a Sweet Back (personagem principal) escapar à polícia (branca) e chegar até ao final do filme vivo, ou seja, conferiu-lhe um futuro. Esta foi uma ideia revolucionária, abraçada inclusivamente pelos Black Panther, que quebrava com o arquétipo do personagem negro como o assassino, o vilão, o “preto” que era abatido antes de chegar ao final do filme, ou seja, que nunca tinha possibilidade de sobreviver. JáCoffy (1973), realizado por Jack Hill e protagonizado por Pam Grier, centra-se numa enfermeira que movida pela vingança inicia uma luta contra os traficantes de heroína. As drogas voltam a estar presentes em Cleopatra Jones (1973), de Jack Starrett, no qualTamara Dobson interpreta uma particular agente especial americana, heroína especializada em artes marciais e com um glorioso semblante de uma deusa funk, que luta contra o tráfico de drogas.

Por sua vez, a homofobia e o racismo dentro da própria comunidade gay são duas temáticas centrais que o realizador Marlon Riggs confronta no filme Tongues Untied (1989). O cineasta, com o auxílio de outros gays “negros”, em particular do poeta Essex Hemphill, celebra nesta obra o amor entre homens “negros” enquanto ato revolucionário.

Sendo este um ciclo que aborda as subculturas negras no contexto anglófono, o documentário de culto Paris is Burning (1990), que passará na Noite de Encerramento, a 11 de julho, acaba por ir ao encontro das questões que este programa também procura explorar. O filme de Jennie Livingston, rodado em finais dos anos 1980, examina os meios pelos quais uma comunidade de gays e transgéneros “negros” e “latinos” nova-iorquinos encontram e constroem sustento, criatividade e famílias, fazendo uma análise da cultura em volta dos salões de dança que constitui um complexo ensaio sobre classe, raça e identidade, bem como sobre os poderes de transformação da dança e da performance.

No âmbito das instalações programadas para este ciclo, além da obra de Robert Mugge, estará presente na Cinemateca Portuguesa a instalação A person is more important than anything else…, da autoria de Hank Willis Thomas, na qual se cruzam imagens e sons do escritor James Baldwin (1924-1987), estabelecendo pontes entre o seu discurso e as preocupações mais prementes do século XXI ligadas à raça, classe e sexualidade. Esta obra foi comissariada pelo NY Live Arts for the Year of James Baldwin.

Relativamente às performances, há que destacar a vinda a Portugal de Vaginal Davis para este ciclo. A artista norte-americana, radicada em Berlim, que no passado participou em filmes de Bruce LaBruce como Super 8 ½ (1995) e Hustler White (1996), apresentará na Galeria Zé dos Bois, a 5 de julho, a performance Sassafras Cypress & Indigo-Black screen images and the [e]motive notion of Freakiness, na qual reflete sobre a sua experiência queer e afro-americana. No mesmo dia a artista e ativista Liad Hussein Kantorowiczapresentará a performance Running/the better Half com referências ao blaxploitation e ao movimento Black Lives Matter.

Integrado neste programa está ainda a apresentação do livro In a Qu*A*re Time and Place, de Tim Stüttgen, que relaciona o movimento blaxploitation e o afrofuturismo de Sun Ra às utopias queer. A apresentação, que inclui uma conferência vídeo, estará a cargo de Liad Hussein Kantorowicz, coeditora desta obra e membro do Tim Stüttgen Archive.

O ciclo “Are you for real?” chegará ao fim, no dia 11 de julho, com uma festa no clubeFontória Blues Caffee, organizada pela plataforma Rabbit Hole em parceria com a House of Melody, fundada na Alemanha, que já se estabeleceu no panorama voguing internacional e que cruza todo o tipo de criativos, sendo que nos dias 9 e 10 esta “casa” irá proporcionarworkshops de voguing no c.e.m. – centro em movimento, com entrada livre.



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