“É Na Terra Não é Na Lua”
Um microcosmos no meio do mar
A Ilha do Corvo é a mais pequena do Arquipélago dos Açores: quatro por sete quilómetros de dimensão; cerca de 400 habitantes; uma pequena vila; os campos de agro-pecuária; a cratera do vulcão inactivo (que ocupa boa parte daquela porção de terra); dois cafés (um deles serve de bar/karaoke/discoteca); um posto dos Correios; uma igreja; um cais; um aeródromo/aeroporto; um aterro sanitário, vulgo lixeira a céu aberto; a Câmara Municipal; e o imenso mar à volta.
Ainda no mar, a caminho da ilha, a voz de Gonçalo Tocha, realizador e operador de câmara de “É Na Terra Não é Na Lua”, em conversa com a de Dídio Pestana, técnico de som, diz que quer filmar todos os rostos, tudo o que existe em terra. Perante a pequenez do Corvo, que se já se avista, o espectador pensa que aquilo se despacha em menos de uma hora. O documentário, no entanto, dura três. Esquece-se o espectador que cada ser humano é um território imenso. A par da da ilha, é essa geografia que Tocha mais vai explorar.
Embora “É Na Terra Não é Na Lua” ponha o pé cá e lá entre o documentário hipnagógico (o que se deixa hipnotizar pelos movimentos e rituais) e o documentário de personagens (o que se deixa conquistar pelas pessoas), acaba por se instalar mais confortavelmente neste último registo. Interessa menos a beleza do enquadramento (Tocha não se importa de deixar na montagem final imagens “feias”: as nocturnas, cheias de grão digital) do que o momento, a conversa, a imagem em si. Essa escolha, porque é uma escolha, dissipa as dúvidas, que surgem no já referido diálogo inicial (encenado, “poético”), de que o realizador se iria impor ao seu objecto. Ora, Gonçalo Tocha, à medida que o tempo avança, é cada vez menos um corpo estranho, um estrangeiro no Corvo, deixando que o assimilem a ele e ao filme (quando a boina corvina está pronta, representando a sua total identificação com a ilha, o documentário acaba).
Claro que nem toda a população, que sempre viveu isolada do resto do país — antes do aeroporto, de 1983, antes do cais, quando os passageiros tinham de ser levados para terra às costas ou ao colo dos autóctones, o dia em que o vapor atracava perto da ilha era feriado —, lhe abre logo as portas (se bem que, dadas as circunstâncias, é bastante confiada). São os mais velhos, os antigos, que gostam de contar histórias para afastar o fastio e gostam de ver a sua terra na televisão, os mais prestáveis. (Não é que veja muita gente jovem; uma criança ou outra, um jovem a ouvir trance a altos berros no carro quitado.)
De qualquer forma, Gonçalo Tocha é paciente, o seu cinema é como a chuva miudinha que molha (filma) cada pedaço de chão (cada pessoa) a seu tempo. E qual delas a mais tocante? Joca, o aventureiro que deixou a família para trás, ou Óscar, o cabo-do-mar que destruiu o seu diário (e dá o título ao filme), ou a representante da CDU, uma das duas votantes na coligação (a sequência das eleições é deliciosa), ou a senhora que tece a boina corvina tão pacientemente como o realizador filma ou os homens que costumavam caçar baleias e deixaram-se disso por causa de uma desgraça mal contada, ou aquele professor de música alemão cansado da rigidez do seu país ou os ornitólogos que vomitam por nunca terem visto aquela ave, ou o repórter da RTP preocupado com o estado das coisas, ou o homem mais velho da ilha, ou o segundo homem mais velho da ilha? A braços com esta dúvida, o espectador nem se dá conta do tempo a passar. Nem se lhe pede paciência de Tocha, apenas que abra os olhos e se deixe hipnotizar pelos corvinos.
LISBOA
CinemaCity Classic Alvalade
Sessões:13h30, 17h10, 21h20
PORTO
ZON Lusomundo Parque Nascente
Sessões: 13h20, 17h10, 21h05
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