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“OS FILHOS DO MAR ALTO” de Virginia Tangvald

A história devastadora de um homem levado pelo mar

Decidira riscar o passado […]. Construíra-me à sombra do meu pai e do mistério que o rodeava. Porém aquele canto de sereia, sublime e luminoso, revelava-se mortífero e capaz de me engolir para todo o sempre.

Sobre este livro, escreve o jornal Le Monde: “Agarre-se bem. O primeiro livro de Virginia Tangvald promete salpicar-lhe o rosto com água do mar, sacudi-lo e deixá-lo atordoado e encharcado da cabeça aos pés, sem saber quando amainará o vento” e esta descrição parece efetivamente assentar como uma luva.

Em Os filhos do mar alto (Alfaguara, 2025), Virginia Tangvald empreende a viagem de uma vida, reconstruindo uma história de liberdade, errância e perda com que procura vestígios do pai que ela nunca conheceu.

Ela nasceu algures no mar das Caraíbas a bordo do Artémis, um veleiro construído pelo navegador Peter Tangvald. Este navegador era o seu pai, um lendário aventureiro que ela apenas viria a conhecer através dos livros que ele publicou e das reportagens que protagonizou, uma vez que a sua mãe, instintivamente antecipando os riscos ainda indefinidos e decorrentes de uma vida errante, decide fugir com ela ainda bebé. Este pai, na verdade, esconde um homem apaixonado pelo mar e pela liberdade, mas pronto a sacrificar os seus por esta utopia muito pessoal. Ela sabe que o retrato deste aventureiro não está completo e que o lado sombrio é terrível.

Ninguém parecia saber quem era o meu pai. Inclusive aqueles que melhor o tinham conhecido. O artigo através do qual ficámos a par da sua morte intitulava-se «A tragédia castiga novamente Peter Tangvald e a sua filha». Na capa, figurava uma fotografia dele em tronco nu, olhando a distância, um bebé aninhado contra o peito. Mas o bebé não era a minha irmã, era eu. Viverei muito tempo assim, com eles, entre fantasmas. Tanto tempo e de forma tão forte, que talvez eu própria me tenha tornado um fantasma. Um pé no mundo dos vivo e outro no mundo dos mortos.

Para encontrar alguma paz, Virginia Tangvald decide recuar no tempo. O livro começa assim numa praia da paradisíaca ilha de Bonaire onde, em Julho de 1991, ocorre uma tragédia: Peter Tangvald e a sua filha mais nova morrem num naufrágio. Este é o início do livro e o fim de uma epopeia de navegação. Este marinheiro lendário, herói dos tempos modernos, é admirado pela sua força, coragem e audácia demonstradas, mas igualmente perturbador pela atitude sombria que carrega, deixando uma memória mista em cada porto onde atracou. Os relatos das suas aventuras aparecem nas primeiras páginas de revistas, e entre elas, a morte de duas das suas sete companheiras, em contexto aparentemente acidental, mas cujas verdadeiras causas permanecerão para sempre envoltas em dúvida.

Ao longo da narrativa, o leitor acompanha esta odisseia familiar, para esconjurar o destino e preencher as lacunas que permitam ancorar a identidade de Peter Tangvald e da própria autora. Impelida pela ânsia de se conhecer, Virginia Tangvald navega por entre os enigmas que a levam a viajar pelo mundo ao encontro daqueles que o conheceram, reunindo as peças e gradualmente construindo uma imagem tão verdadeira quanto possível desse homem, o seu pai.

Esta jornada de encontro com a verdade, aporta, por vezes, respostas dolorosas, que a autora ilumina com delicadeza, à boleia de uma escrita belíssima, fluida e quase poética que transforma a narrativa num gesto de beleza e apaziguamento.

A força do livro reside nesse mergulho profundo numa alma consumida pela sede de liberdade, capaz de arrastar outros para o seu abismo. Com uma escrita lírica e envolvente, Os filhos do mar alto é uma história de resiliência, onde a coragem de enfrentar o passado revela o esplendor e o mistério da vida, mesmo na dor.

No final, a autora despede-se, selando uma possível reconciliação.

Por fim encontrei-vos. Eu, que vos procurara em todos os mares, de alma errante e agitada. Todo este tempo, estiveram ali. Talvez procurasse algo tão simples como o vosso corpo. Foi difícil partir. Sabia que nunca mais regressaria. Foi a última vez que estive perto de vocês. […] Adeus, papá.



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