“Paradaise” de Fernanda Melchor
Manual de instruções para criminosos banais.
Franco, Polo, Milton, Zorayda. Quatro nomes, quatro pessoas, quatro pontos cardiais de uma geografia que tem como capital Progresso, uma cidade portuária situada no coração da província de Yucatán, México, e que é o palco de Paradaise (Elsinore, 2024), a mais recente aventura literária da mexicana Fernando Melchor, autora de Temporada de Furacões.
É (principalmente) em órbitra destes quatro personagens que gira a narrativa, um misto de inocência, violência, egoísmo e desespero, cujo ponto de partida é a obsessão de Franco, um rapaz obeso, solitário e viciado em pornografia, pela senhora Marían, uma mulher atraente, mãe de família, e casada com um bem-sucedido nome da televisão nacional mexicana, e que habita em Paradaise, um condomínio de luxo onde Polo, aos 16 anos, trabalha como jardineiro.
Não contente pode ter consigo uma relação próxima com a família de Marían, sendo uma presença regular na casa desta graças à amizade que criou com os filhos do casal, Franco quer mais e engendra um plano para atingir o seu maior desejo: fazer sexo com a mulher.
Esse plano é desenvolvido com a colaboração de Polo, ainda que os objetivos de ambos sejam bem diferentes pois, se Franco quer desesperadamente satisfazer prazeres carnais, o jovem jardineiro sonha em sair de Progresso e roubar a família parece ser a solução para todos os seus problemas, seja isso uma relação conturbada com a mãe, que o acusa de ser «preguiçoso e bêbado», a armadilha orquestrada pela prima Zorayda que (aparentemente) carrega na barriga um filho de Polo, ou a relação cada vez mais distante com Milton, a grande referência de Polo, mas que afinal não passa de um cobarde delinquente à merce de um gangue local.
O resultado é uma constante descida ao inferno, patrocinada pela ingestão excessiva de álcool barato que tolda a mente dos jovens, mas que, ainda que de forma efémera, serve de escape para uma vida sem grandes objetivos, e, acima de tudo, como combustível para a elaboração de planos para conseguir uma vida melhor, nem que isso signifique a banalidade da violência e crime.
Tal como em Temporada de Furacões, Melchor constrói a trama assente numa linguagem bruta, crua, que, tal como as ações dos protagonistas, não olha a meios para atingir fins, criando uma dinâmica narrativa fechada sobre si mesma e sem a necessidade de diálogos prenunciados, valendo-se de uma extrema e cuidada capacidade de descrever locais, e, acima de tudo, sentimentos, emoções, com uma simplicidade desarmante e que desagua no somatório de momentos e pensamentos compulsivos, interiores, que se mesclam com a vida de outros personagens.
Isso faz com que vão surgindo dados, fragmentos individuais, que se colam à narrativa global, tornando-a mais coesa, rica, completa, perturbada e perturbante, sufocante e muito, muito negra.
No fundo, cada protagonista procura uma saída, uma forma de ter um presente ou futuro que os faça abandonar a angústia e o desespero de uma solidão cortante, para eles injusta, onde tudo vale para sacudir a desilusão de uma vida sem brilho, estagnada e miserável, onde “futuro” é uma palavra desconhecida no seu limitado alfabeto.
O resultado é uma leitura contagiante e perturbadora com diversas camadas de brutalidade contextual, incluindo cenários de desigualdade e discriminação social, abuso, violação, intimidação e dependência sexual, sublinhada por uma comunicação explícita, amoral e assumidamente obscena, em tudo “justificada” por uma realidade imperativa e impositiva, alicerçada numa deliberada violência visual e linguística que, no caso da escrita de Fernando Melchor, é sinónimo de boa literatura.
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