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“A cidade e as suas muralhas incertas” de Haruki Murakami

Todas as pessoas são um mundo. Algumas, são mais

Quem é leitor assíduo da obra do japonês Haruki Murakami sabe o que, em termos narrativos, por princípio, pode esperar e enfrentar. Pode essa “previsibilidade” ser negativa, considerada uma traição ao próprio objeto da literatura que se quer distinta, única, inovadora e a explorar novos caminhos? No caso dos milhões de fãs do escritor de livros como Crónica do pássaro de corda, A Rapariga que inventou um sonho, Norwegian Wood, Kafka à beira-mar, a trilogia 1Q84 e muitos outros, isso não parece fazer sentido ou ser um “problema”.

Tal está muito relacionado com o facto de Murakami ter inventado um universo próprio, um espaço (mais ou menos) idílico, que funde o real com o onírico, e em que os personagens são como que mundos de características unas, planetas que orbitam em si próprios ou em redor de um qualquer Sol. A “crítica” apelida essa corrente de Realismo Mágico, um reino onde o mistério e a metáfora assumem a condição de omnipresença, através da confluência entre uma realidade elástica e elementos da imaginação, do fantástico, daquilo que nos assombra ou ilumina, e onde, na literatura, pontuam nomes como, por exemplo, Gabriel García Márquez, Franz Kafka, Jorge Luis Borges, Lewis Carroll, Italo Calvino ou Carlos Ruiz Zafón, sem esquecer o paralelismo com a obra do mestre Hayao Miyazaki, nome maior da animação nipónica.

Em A cidade e as suas muralhas incertas (Casa das Letras, 2025), Murakami continua a trilhar o tal caminho que aceitou abraçar, sob a forma de um acordo tácito, sendo mais uma declaração de amor ao poder transcendente da palavra escrita, e, tal como confessa do posfácio deste livro, «tem como ponto de partida o relato homónimo» que publicou em 1980, na revista literária Bungakukai. Tendo ficado insatisfeito com o resultado inicial – Murakami nunca incluiu esse título na sua antologia –, retomou, em 2020, em pleno confinamento decretado para combater a Covid-19, o projeto de o reescrever, transformando um romance curto numa novela longa dividida em três partes, para «não deixar pontas soltas».

Também por esse contexto, não se estranha a atmosfera de isolamento que se vive neste livro terminado, portanto, quatro décadas depois de uma falsa-partida. O resultado é uma maratona de 550 páginas que tem como protagonista um rapaz, um homem, sem nome, que, aos 17 anos, se apaixona por uma colega de escola, um ano mais nova e que parece desligada da realidade. Enquanto a relação entre os dois avança, cresce, ela confessa que o seu verdadeiro “eu” não está neste mundo, mas sim num plano alternativo da existência, onde trabalha numa biblioteca de sonhos que fica numa cidade cercada por um muro cuja altura se perde de vista. E a única forma de o protagonista a encontrar nesse mundo é desejá-lo com toda a sua força e abdicar de parte de si.

Entretanto, para se conhecerem melhor, vão trocando cartas. Numa delas, a rapariga escreve que sofre de «fases de rigidez do coração», que não permitem que ame e se entregue. Quando eclode o outono, o protagonista recebe uma derradeira missiva, escrita numa toada de despedida, sendo o último suspiro da rapariga que desaparece como que por…magia. Completamente apaixonado e desesperado, o rapaz entrega-se à tristeza, mas não desiste do seu amor. Por isso, decide procurar a tal cidade amuralhada na esperança de um reencontro.

Um dia, sem saber muito bem como, consegue chegar ao portão dessa cidade misteriosa em forma de rim, onde o tempo não é palpável, e o relógio da torre não tem ponteiros, invadida por bestas de cor castanha que se assemelham a unicórnios. Mas, para entrar, tem de fazer cedências e sacrifícios, seja perder a sua sombra, e o peso que isso acarreta, ou assumir o papel de leitor de sonhos numa biblioteca onde não existem livros.

Assim, envolto num espírito de missão num local onde a lógica desafia a realidade, aceita passar os dias “recluso” nessa biblioteca enquanto decifra sonhos em forma de ovo, e que, após decifrados, são libertados, graças aos «olhos novos» que tem de proteger com uns óculos verde-escuros. O seu (único) consolo é ter a companhia da sua amada, que o conforta com um delicioso chá diário, e que é, a par dele, funcionária única da biblioteca. No entanto, ela não o reconhece, e esse facto é um dos maiores desafios do protagonista que continua apaixonado pela rapariga que conquistou o seu coração na juventude.    

Em mais uma ode à coexistência entre o real e o irreal e à sua metamorfose, ou aos conflitos entre o estado físico e metafísico, Murakami serve-se da sua escrita metafórica para abordar o desejo humano, universal, de encontrar um significado mais profundo num mundo superficial e indiferente, mesmo que isso signifique ter de lidar com o sofrimento que nasce da não compreensão de algo e obrigue a transitar entre universos, mas com um e elo e tema comum: a literatura.   

Por isso, não é coincidência que o protagonista vagueie entre mundos, onde, num deles, é leitor de sonhos numa biblioteca sem livros ou, numa existência mais terrena, ter trabalhado como editor livreiro e, por fim, como diretor de uma biblioteca, numa zona remota do Japão, cujo maior leitor é M**, um jovem que lê de forma compulsiva, sem critério, que se distingue por uma existência “autista” e uma devoção aos Beatles, envergando, quase invariavelmente, uma sweatshirt verde de Yellow Submarine, um dos clássicos dos “quatro de Liverpool”.

Outros personagens que deixam marca neste livro são a Sra. Soeda, dedicada e exemplar funcionária da biblioteca dirigida pelo protagonista sem nome, agora de meia-idade, assim como o excêntrico e espectral Sr. Koyasu, ex-diretor da mesma biblioteca e uma «consciência num corpo transitório», que defende que usar uma boina e uma saia xadrez é «sentir-se parte de um bonito poema».

Há também a jovem incapaz de amar que é proprietária de uma pequena cafetaria, no caminho que une a biblioteca e o cemitério da cidade “real”, que tem a particularidade de servir deliciosos muffins de mirtilos – um dos poucos momentos de prazer tangível do protagonista e reflexos da busca do protagonista por maior sentido e estabilidade – e presentar os clientes com uma atmosfera envolta de música erudita e jazz, duas das paixões assumidas por Murakami e que têm, claro, presença habitual na sua obra.

Na sua essência, ler A cidade e as suas muralhas incertas, é abraçar a sensação de um doce deja vú que leva o leitor, tal como acontece ao protagonista, para um mundo privado, (quase) só seu, com ou sem frases ou palavras salpicadas a negrito. E enquanto se percorrem as páginas, ficamos retidos num diálogo entre o corpo e a alma, por via de reflexões várias, metafóricas, sempre com um piscar de olho à filosofia budista, que possibilita à leitura abrir a porta a sentimentos díspares que guardamos inconscientemente.

É tão fácil ficar apaixonado pelos livros e personagens de Murakami, assim como pelos seus “cheiros” e “sons”. Mais. Pouco nos interessa que esses personagens possam ser “clones” de outros protagonistas, que a história “se repita”. Aquilo que se sente ao ler A cidade e as suas muralhas incertas é que a obra do escritor japonês se completa a si mesma, numa espécie de eterno retorno, no qual se reflete sobre a memória, o tempo, a Natureza, o amor, possível ou não, mesmo que em mundos diferentes, tendo a coragem aludir aos grandes mestres da literatura. Esse mérito é ainda maior em alguém que, ao longo de quase 50 anos de escrita, tem conquistado milhões de almas que fazem da leitura uma paixão, rotulado por alguns como mainstream, e, tamanha audácia, configurado na eterna lista dos candidatos a Nobel. Se alguém dia o conseguirá, não sabemos. Se seria justo, sem dúvida.

Por tudo isso, e muito mais, este livro, que tem tanto de arrebatador como de desafiante, deve ler-se devagar, como quem saboreia um vinho distinto. Só assim se sentem todas as suas particularidades, camadas e sabores. Até porque, arriscamos dizer, esta é uma das obras mais “lentas” e contemplativas de Murakami, um romance proustiano cheio de nuances e emoção, que convida à desaceleração do tempo e à reclusão da leitura, pois, só assim, se pode resistir e enfrentar a tirania do avançar dos ponteiros do relógio, quando existem. E, perante o fim, quando se lê a última página, o desejo é dizer: até sempre!



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