A Rapariga que sabia Ler, de Frances Hardinge
O poder das palavras
— (…) é melhor que te habitues a histórias sem final. As histórias verdadeiras raramente o têm.
Já dizia Edward Bulwer-Lytton que “A pena é mais poderosa do que a espada”. Tal afirmação não podia ser mais adequada a esta obra.
A Rapariga que sabia ler, de Frances Hardinge (Presença, 2021), é o exemplo perfeito de como as palavras têm peso, como podem incitar revoltas, abrir horizontes e mudar a realidade num ápice.
Uma odisseia atribulada e perigosa em torno de espiões, piratas, guildas que lutam por domínio, reais e um parlamento que (quase) só servem para enfeitar, um vigarista, uma adolescente precoce e ambiciosa, e um ganso valente.
As palavras eram perigosas quando se deixavam à solta. Eram mais poderosas do que canhões e mais imprevisíveis do que tempestades. Podiam virar a cabeça das pessoas do avesso e traçar-lhes o destino. Podiam pegar em reinos inteiros e sacudi-los até chocalharem. E isso era algo bom, algo maravilhoso…
Frances Hardinge pode ter baseado, vagamente, a sua história num reino ficcional que se assemelhava a Inglaterra do séc. XVII, mas as semelhanças terminam aí.
Com 368 páginas repletas de inúmeras descrições mirabolantes, o enredo é uma aventura incrível num reino ainda mais inacreditável. Um reino fraturado, uma luta entre fações.
Com distintas personagens, todas apelativas e rica em detalhes e diálogos, Hardinge pinta um mundo desconhecido, com muita intriga política e a busca pela verdade universal.
Nele podemos encontrar o Estado, representado pelo Duque, Lady Tamarind e o Parlamento; a Religião, representada pelos Amados e os Passarinheiros; e o Poder, representado pela luta amistosa entre as diferentes guildas.
É in-usual, talvez, para um livro de crianças, mas, em simultâneo, adequado para jovens mentes em desenvolvimento. É recomendado como leitura autónoma para o 3.º Ciclo, mas adequado a jovens e graúdos que apreciem uma história bem desenvolvida com personagens interessantes, conflitos políticos/ religiosos e uma protagonista que sabe o que quer.
No último mês, o bebé dependurado bem podia não ser mais do que um quadro na parede, tal fora a atenção que Mye lhe prestara (…) Agora, porém, tinha um Nome, e os Nomes eram muito importantes.
Ela tinha um Nome.
Mosca Mye, teve desde logo uma origem turbulenta. Filha de Quillam Mye, um Impressor desterrado em Chough, nunca conheceu a sua mãe e teve o infortúnio de não ter nascido a melhores horas de outro dia, já que os nomes eram dados conforme o dia e hora do Amado, e todos sabem que os nomes têm importância.
Os olhos de Mosca tinham-lhe valido incontáveis tareias e longos anos de constantes suspeitas. Por um lado, porque tinham a capacidade de parecer venenosos, mesmo quando ela continha a língua afiada. Por outro, os seus olhos comandavam um poder que estava para além do de qualquer outro em Chough, com exceção do magistrado. Ela sabia ler.

Aos doze anos, a viver sob a tutela dos tios após a morte do seu pai, Mosca era trancada todas as noites no moinho, pois apesar da sua capacidade servir de utilidade para o seu tio também a tornava indigna de confiança aos seus olhos.
Após “acidentalmente” pegar ao fogo ao moinho do tio, onde se encontrava, Mosca arma-se de valentia e ruma ao desconhecido, lado a lado com o seu fiel escudeiro e protetor feroz, Sarraceno, um ganso tão bravo, propenso às dentadas, a quem todos (Homem ou animal) temem.
Mas o seu caminho não estaria completo se não fosse buscar mais um membro para o seu caminho rumo ao conhecimento. Preso devido à sua língua de veludo que derramava palavras sedutoras como mel, a sorte parece ter acabado para Epónimo Clent. Mas graças a Mosca tem mais uma hipótese de ser livre.
Rumo a Mandelion, disfarçados, Mosca desconhece a confusão em que se vai meter. Desenrascada, esperta, sabe como manobrar certas situações de alarme.
Mandelion é um território, aparentemente pacífico, com as Guildas a manterem tudo nos trilhos após terem chegado a um acordo entre todas as partes interessadas. Com a derrota e eliminação dos Passarinheiros e da sua palavra, o reino dividiu-se em diversas guildas, sendo as três principais: os Barqueiros, os Serralheiros e os Impressores.
Os Passarinheiros acreditavam que os Amados eram nada mais que distrações e enganos, comparando a dedicação do povo aos sacrários, como crianças a brincar com bonecas. Numa tentativa de usurpar todo o poder, foram gradualmente suprimindo os Amados, em prol do seu Coração da Verdade, até que se deu a revolta e o desaparecimento de todos os Passarinheiros.
Os Barqueiros têm o controlo do rio Slye, ninguém passa sem a sua autorização; os Serralheiros, o acesso, sem travões, a todo o lugar; Lady Tamarind também joga as suas cartas, e o Duque, figura louca e domável, obcecado com a sua paixonite pelas Rainhas Gémeas, é usado em prol da paz e prosperidade de Mandelion, a quem todos tentam seduzir para o seu lado.
O povo inculto e temeroso das guildas, teme a palavra escrita, e foge dos manifestos radicais que vão surgindo por Mandelion. Toma como única verdade a palavra dos Impressores (que aqui agem similares à Inquisição, aprisionando qualquer um que se depare com papéis não oficiais e queimando livros que considerem serem possíveis catalisadores à revolta).
Mas quando misteriosos papéis começam a surgir, com palavras e ideias não sancionadas pelos Impressores, Mosca e os seus companheiros vão descobrir que outro mundo se esconde por detrás da fachada pacífica, um mundo de esquemas e sociedades secretas, que pode facilmente levar à morte.
… há uma coisa mais perigosa do que a Verdade. Aqueles que calam a Verdade são muito mais perniciosos…
A Rapariga que sabia ler, de Frances Hardinge, vai além de um mero livro infantil, com tópicos sensíveis que dão o que pensar, embutidos numa aventura de uma menina, amante de livros, que decide partir em busca de mais conhecimento. Uma ideia ambiciosa e interessante.
É uma história sobre livros, a importância e os perigos da palavra, oferecida numa bandeja repleta de intriga, mistério e momentos engraçados, com um final inesperado, mas verdadeiramente satisfatório.
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