“A vingança é minha” de Marie NDiaye
Fantasmas do passado e presente.
Alguns livros são difíceis de categorizar, pois navegam num mar com diferentes vagas de intensidade. A Vingança é minha (Alfaguara, 2024), de Marie NDiaye – vencedora de vários prémios internacionais como o Prémio Goncourt, o Prémio Marguerite Yourcenar ou o Austrian State Prize for European Literature – é um desses livros.
Se, por um lado, possui elementos de um thriller policial com contornos de suspense, mistério e intriga, também explora, e afunda(-nos), em temas como a fragilidade da memória, a identidade fraturada e, acima de tudo, a falência da condição humana. No entanto, a competência e genialidade criativa de Ndiaye consegue combinar na perfeição todos esses elementos dando lugar a uma narrativa elegante e muito bem trabalhada, ainda que difícil tais os temas que explora, deixando o leitor entre a expectativa e a repulsa, entre a compaixão e a condenação, entre a razão e o desejo de “justiça”.
No epicentro desta tempestade narrativa está Dra. Susane, uma advogada de 42 anos, tendo como pano de fundo Bordéus, e cuja vida muda quando um macabro assassinato surge no seu caminho. NDiaye, admiradora confessa de Stephen King ou Joyce Carol Oates, cria a protagonista deste livro com várias camadas de complexidade, uma mulher carente, especialmente assombrada por um profundo anseio pelo carinho da sua empregada doméstica, Sharon, uma excelente cozinheira e natural das Ilhas Maurícias, que luta pela sua legalização, contando com a ajuda da sua patroa para resolver essa situação, mas que as diferenças sociais e disparidade de classes podem ser um elemento desestabilizador, silenciosamente fraturante. Isso e o facto de Susane não saber distinguir amizade de uma relação entre patroa e empregada.
Também o relacionamento da advogada com os pais, o Sr. e a Sra. Susane, é sui generis, contraditório e à base de chantagens mais ou menos claras ou veladas. Embora se note o orgulho da família pela sua carreira jurídica, ainda que suspeitem do sucesso da mesma, seja pelo velho carro que Susane conduz ou um apartamento sofisticado e “burguês”, mas pequeno, há detalhes perturbadores de uma lembrança do passado que acelera a tensão e traz a palco sentimentos como a culpa e o carregar de um fardo com décadas de incerteza e conveniente esquecimento, o que condiciona o relacionamento entre pais e filha.
No fundo, a narrativa cresce bifurcando-se em dois mistérios: o assassinato de três crianças pela mãe, Marlyne, aparentemente excelente na sua função de progenitora, e um incidente sombrio do passado de Susane. E à medida que Susane se deixa contagiar neste duplo enigma, a sua vida entrelaça-se com a de Gilles Principaux, o pai enlutado, e marido de Marlyne, que pode ser uma figura há muito perdida na história e memória da advogada.
À medida que nos embrenhamos no livro, mais absorvidos ficamos, pois a escrita de NDiaye é contagiante, principalmente quando convidados a entrar na sua difusa memória ou nos diálogos com Gilles (sempre devoto à mulher) ou Marlyne (um ser magoado que despreza o marido) que, ao contar as suas visões da história, se confundem com monólogos intrigantes, desesperados e confessionais onde, mais do que procurar verdades, mentiras ou julgamentos, se pretende encontrar uma “lógica” para o terrível acontecimento. Há também lugar para metáforas audaciosas e imagens vívidas (por vezes, flashbacks) que criam uma experiência de leitura única, onde até os aspetos mais mundanos são transformados em momentos de profunda reflexão e obsessão. E depois há também dor, muita dor, interna, pulsante, cauterizante. Um sentimento dilacerante, profundo e intenso, que inquieta.
Muito mais do que um policial, A Vingança é minha torna o leitor refém da mente de Susane, entrando simultaneamente numa viagem pelos limites da condição humana, na tentativa de compreender a “justificação” para o mais hediondo dos atos como é o filicídio, e num exercício de meditação sobre a própria identidade, as complexidades do amor e da memória, no caso traída pela confusão de apelidos, e por um passado não esclarecido que pode ser uma prisão física e emocional quando não se encontra uma ligação, uma justificação, uma razão de vida.
Sem dúvida, um dos livros que merece estar entre os melhores do ano.
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