“O Contrário de Nada” de Tess Gunty
BEM-VINDOS À COELHEIRA!
São poucos os escritores cuja primeira obra atinge um patamar de excelência que deixe os leitores rendidos. A norte-americana Tess Gunty, autora do excelente O Contrário de Nada (Alfaguara, 2024) faz, com todo o mérito, parte dessa montra, tendo alcançado a proeza de arrebatar o National Book Award, entre outros prémios, com este seu romance de estreia.
No centro da narrativa está, por um lado, a fantasmagórica Blandine (nascida Tiffany), uma das mais ricas, interessantes e (in)completas personagens criada nos últimos anos, confessa adoradora de religiosas míticas e mártires, e, por outro, a Coelheira, um complexo habitacional lowcost na decadente cidade Vacca Vale, no Indiana, terra natal de Gunty, que se mantém assombrada pela indústria do automóvel que, entretanto, desapareceu, juntando almas à beira do precipício emocional. Exemplo disso são, podemos ler na sinopse do livro: “um redator de epitáfios online, uma jovem mãe com um segredo, uma mulher que trava sozinha a sua guerra contra roedores, um filho ingrato, três rapazes enfeitiçados pela mesma rapariga”. Todos têm em comum a relação (mais ou menos direta) com Blandine e são vítimas de alguma catástrofe, mesmo que assumam esse destino como uma forma de libertação.
A sucessão de acontecimentos, alguns deles violentos, incómodos e/ou amargos, criada por Tess Gunty serve de ponto de partida para uma viagem, sem regresso, cujas paragens abraçam, por exemplo, cenários de abuso físico e emocional, a timidez e insegurança de uma profissional de mensagens de entes “queridos” post mortem, a raiva de um filho frustrado que procura vingar-se de uma mãe ausente e egoísta, o medo de uma mãe que não consegue encarar os olhos da filha e o desespero por provar que se é merecedor da admiração alheia, mesmo que isso significa matar e viver fora do controle.
A tornar toda esta intrincada trama num romance extraordinário, está a habilidade da escrita de Gunty que navega entre a fragilidade e uma assertividade que embrenha o leitor numa mescla de estilos e vozes, fazendo dessas diferenças o elemento aglutinador da narrativa, pois são os desequilíbrios sociais e psicológicos de e entre personagens que tornam este livro num todo cativante, coeso e surpreendentemente imaginativo, recorrendo a territórios linguísticos caros aos grandes autores norte-americanos assim como à dialética comunicacional nascida com a Internet e as redes sociais.
Ainda que O Contrário de Nada seja um livro sobre pessoas emocionalmente fraturadas, perdidas, sombrias, é, no fundo, o somatório de várias histórias de esperança, mesmo que não de uma forma declarada, assumida. Em vez disso, vemos pequenas mudanças nos indivíduos que se movem numa direção “melhor”, estendendo a mão aos outros, assumindo a responsabilidade pelas suas ações, encontrando algo de bom dentro de si mesmos, algo que pensavam não existir.
É claro que essas ações positivas nem sempre estejam à tona e, em alguns casos, Gunty apenas partilhe intencionalmente cenários de regressão ou simplesmente falsas pretensões que fazem com que o leitor amaldiçoo ou absolva um personagem. Fazer essa triagem através da leitura, qual mergulho num mar revolto em forma de confissão, é outro dos desafios deste brilhante livro. Se arriscar lê-lo, vai entender o que aqui partilhamos.
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