Caminhando pelo Japão
Tudo o que realmente interessa saber sobre o Japão.
A minha suspeita principal no que toca às viagens é que, 90% do tempo, uma pessoa acaba só por procurar no lugar visitado a confirmação para as expectativas que já nutria antes de lá ir. Qualquer pessoa que tenha mudado de cidade, quanto mais de país, pode atestar quanto tempo demora até que se possa criar uma visão relativamente desprovida de estereótipos de uma certa região. Pois bem, fui três semanas ao Japão, e embora que para uma viagem isso fosse mesmo bastante tempo, não é de longe o suficiente para chegar ao tal patamar que referi anteriormente. O que se seguem são portanto impressões – e se posso dizer com alguma convicção que tentei não conferir forçosamente ao que vi e ouvi características das minhas expectativas, tão pouco fui uma tábula rasa sobre a qual se pudesse escrevinhar a pura e autêntica cultura japonesa. Com essas ressalvas, passo a relatar as impressões gerais que me ficaram do país:
Preconceito confirmado: os japoneses são muito corteses
O que não quer dizer que não existam lá pessoas antipáticas, bruscas e mal educadas. Mas no geral, parece persistir um maior grau de empatia e vontade de ajudar o próximo do que em terras ocidentais. Nas famosas retretes japonesas (que tem realmente tantos botões como o estereótipo indica, se bem que também há uma alavanca como nas nossas, pelo que não acontece ter se que tocar à toa à procura do certo) existe um botão cuja única função é ligar uma gravação de água a correr. Isto porque, antes da sua introdução, os japoneses gastavam quantidades enormes de água a puxar franticamente a retrete para abafar o ruído das suas excreções. Será talvez o exemplo mais caricato dessa vontade de ajudar o próximo – e acima de tudo o forasteiro – que se me deparou vez após vez na viagem. Quase nunca ocorreu que uma tentativa de buscar ajuda na orientação não fosse aceite; muitas vezes acontecia ate os próprios transeuntes (muitas vezes idosos) aproximarem-se de nos com um simpático “may I help you?”.
Importante notar que esta tendência não parecia ter nada nem de submissão colonial nem de ritual ofegante. Os japoneses, no geral, parecem um povo livre e feliz – a famosa tensão e stress de uma das sociedades mais workaholic à face da terra manifestava-se somente na quantidade considerável de pessoas que dormiam no metro, acordando automaticamente na sua estação pretendida, e talvez nas caras zombieficadas dos empregados de seven eleven (ou seven & i holdings, como são misteriosamente conhecidos no Japão), um posto pouco invejável em qualquer lado do mundo e que certamente deve lá possuir uma certa humilhação acrescentada. Mas no geral, não conseguia discernir qualquer peso de formalidade nas caras sorridentes que nos informavam sobre as labirinticas ruas de Tóquio. Apenas o instinto mercantil, aquela falsa simpatia internacionalmente divulgada que faz com que o turista ingénuo ache muito acolhedor o empregado de mesa que lhe acabou de impingir uma refeição medíocre por um preço astronómico, consegue eclipsar essa tendência – e mesmo isso só em algumas lojas e restaurantes (principalmente as áreas em que pessoas já anunciam de fora as suas iguarias – sempre um mau sinal).
E por muito insultuoso e fetischizante possa parecer a imagem da sorridente, infantilizada geisha nipónica, existem muitas jovens japonesas que, não sei bem se desconhecendo ou ignorando propositadamente o velho estereótipo, conseguem parecer entusiásticas, avivadas e refrescantemente positivas sem dar o mínimo indício de se estarem a conformar a algum odioso modelo antiquado de ideal feminino. Na pastelaria mais Indie de sempre (manejada por um jovem casal, livros infantis de todo o mundo nas mesas) assistimos a um diálogo em que uma mulher de meia idade contava algo à jovem confeteteira – a julgar pelos “ooooohs” que essa libertava, de duração imensa e tom cada vez mais fino, devia ser a história mais interessante à face da terra. No aeroporto, vi duas moças despedirem-se com um atencioso “bye bye!” dum bando de bonecos pikachu. Até mesmo certos rituais do emprego davam azo a este tipo de diversão charmante. Por exemplo, quando uma pessoa paga a conta num restaurante japonês, a pessoa a servir lança sempre um “arigato gozeimasu!”, significando “muito obrigado!” mas dito com a verve de “sai um bife!”; a pessoa mais perto recupera esse mote e, enquanto se sai pela porta, ouve-se um refrão harmonioso de arigatos gozeimasus de toda a equipa. Ora, repetir esse ritual para cada cliente, dia após dia, deve decerto ser algo fastidioso – mas não faltavam as empregadas de mesa que, pelo menos aos olhos deste ocidental, repetiam a frase cada vez com a alegria de quem começa o seu jogo preferido. Idealização de um ocidental demasiado mergulhado na formosura asiática? Talvez, mas pela gorjeta ao menos não o faziam – uma vez que esse hábito simplesmente não existe no Japão.
Preconceito destruído: o Japão é tecnologicamente superior
Confesso que não estive nas condições ideais para entrar em contacto com a vanguarda da informática japonesa – a minha actividade de internauta passou-se principalmente em hotéis e aeroportos, não nos sumptuosos cyber-cafes com promessas de free ice cream. Mas mesmo assim, não deixou de ser jocoso sentar-me a um computador no país mais futurista do mundo e inserir uma moeda de 100 yen para poder passar dez (ou, no primeiro hotel, cinco) minutos a utilizar uma versão do Internet Explorer com a Yahoo.Co.Jp como homepage. Também curiosos são os elevadores nipónicos (omnipresentes num país que aposta tanto em arranha-céus); a primeira pessoa que entra tem a obrigação de manter premido um botão para que as portas não se fechem, uma vez que o período natural de abertura limita-se a alguns segundos. Isto dever-se-á talvez menos a um atraso tecnológico e mais à obsessão com a produtividade, mas de qualquer forma fiquei por mais de uma vez entalado entre portas cruéis.
O cúmulo, no entanto, ocorreu numa pensão em Nikko, uma pequena aldeia a algumas horas de viagem de Tóquio. Obviamente o progresso demora a chegar à província: no meu quarto era-me dada a opção de, por míseros 300 yen, utilizar o leitor VHS anexado à televisão.
Preconceito confirmado: o Japão é um paraíso para comer bem
Claro, como sempre, nem todos os restaurantes são bons, e um forasteiro não tem outra opção a não ser tentar a sua sorte. Mas os melhores restaurantes de sushi a que tivemos acesso (e importa frisar que também houve experiências menos agradáveis, sendo que não é de todo possível avaliar a qualidade de acordo com o preço) arruinaram-me, temo, a vontade de alguma vez voltar a comer a iguaria fora do país. Também de interesse são as espetadas teriyaki (muito mais leves e menos gordurosas que os espetos de carne ocidentais), o misto de pizza e panqueca denominado okonomiyaki, e a variedade de legumes e peixes fritos denominada tempura, termo que, segundo me foi atestado várias vezes, foi originalmente introduzido pelos portugueses. Sendo o meu paladar português pouco adequado às subtilezas da cozinha-estereótipo do Japão, fiquei também contente por descobrir que as sopas com massa soba, de aspecto tão humilde, possui na verdade todo o peso de uma boa francesinha.
Mesmo na comida rápida, o Japão tem os seus encantos: o Teriyaki Burger da McDonald’s vale umas dentadas, mas muito mais interessantes são os hamburguers da cadeia Mos Burger. Pequenos e munidos somente de uma combinação pão-carne-cebola, conseguem no entanto subir a um maior patamar de delicioisidade devido ao seu célebre molho branco, que jorra para o papel de embrulho e as mãos dos clientes.
Preconceito destruído: a religião oriental é uma cena ultra solene e mística
Das primeiras vezes que entrei em templos (budistas, shintoistas e mistos, abundam por todo o lado e aparecem nas ruelas como se de minimercados se tratassem) ainda senti o mesmo tipo de apreensão que, como ateu convicto, sinto quando entro em igrejas ocidentais – há aqui gente a tratar da sua vida espiritual, e a última coisa que querem são turistas intrusos. Mas cedo aprendi a despir esse complexo, porque no Japão a religião não funciona assim – os templos são visitados quase como parques, e se lá há pessoas a rezar e a atirar moedas (um dos rituais mais comuns), mais ainda há a passear relaxadamente ou a tirar fotografias. Mais, não parece haver qualquer espécie de animosidade entre os dois grupos, e uma pessoa pode até passar de um para outro no espaço de um segundo, como o homem que vi rezar, atirar a moeda e sacar a câmara para tirar uma fotografia. Dá a impressão que, por lá, é deixada uma maior liberdade ao indivíduo para decidir ele mesmo que relação é que pretende ter com a religião e, consequentemente, de a viver nos templos independentemente de quão trivial poderá ser. Terá, provavelmente, algo a ver com o facto de as religiões orientais serem menos literais que as do Ocidente: vide o shintoismo, no qual há templos para ratos e raposas.
Preconceito confirmado: os japoneses têm uma predilecção por tudo que é considerado kitsch no Ocidente
A minha viagem decorreu durante os finais de Novembro/inícios de Dezembro e deixem que vos diga que, em matéria de febre natalícia, os japoneses batem qualquer nação ocidental. Sem carregar o peso de festa religiosa, no Japão o Natal é apenas uma ocasião para uma orgia total de tudo que a população adora: luzinhas brilhantes, consumismo desenfreado e as impiedosas músicas, quanto mais meloso melhor, que acompanham a temporada. Por vezes, ao andar pelas ruas de compras com o «Jingle Bells» a perseguir-me, começava a pensar que já entendia melhor como se chegou ao conceito do sidescroller. Nos poucos lugares em que não reinava a música natalícia, encontravam-se os outros estereótipos que já conhecemos – J-Pop açucarado e Lite Jazz do mais queijoso possível. Uma adaptação difícil para o viajante, sem dúvida, mas com o correr do tempo comecei a ver algo estranhamente relaxante nessa busca pelo muzak. A sensação de estar longe de todos os conflitos, complexos e facciosismos através dos quais vemos a música na Europa, de estar num lugar em que as pessoas podem simplesmente apreciar uma melodia bonita, tem algo de extremamente libertador. Claro que a predilecção pelo muzak não é consensual, sendo que o Japão acompanhou mais ou menos todas as cisões da Pop ocidental, sem contar com as suas próprias, e decerto deve ser terrível para muita gente ter que se expor diariamente aos doces nadas que emanam dos centros comerciais, mas mesmo que este gosto colectivo seja uma ilusão, para o turista que não tem tempo de descobrir não deixa de ser uma miragem agradável.
Preconceito confirmado: os japoneses adoram a doçura
Tudo no Japão tem mascote. Tudo. No metro de Tóquio, trata-se de uma simpática família de texugos – uma ilustração particularmente desconcertante mostra o agregado familiar a passear de cara alegre, inconsciente da figura que está a ser esmagada pelas portas do metro a pouca distância. Mesmo a polícia não prescinde do seu querido Pipo-Kun, uma espécie de ratinho com uma antena na cabeça que o faz parecer um extraterrestre. Tem a sua própria canção e tudo.
Preconceito destruído: tudo no Japão é ultra-organizado
Bem, a maioria das coisas são. Em certos lugares há filas organizadas para o metro e tudo. Mas num aspecto em específico o Japão falha: os mapas. Não só o cidadão comum parece ter uma dificuldade excessiva em lê-los, como os fabricantes decidem ainda complicar a coisa colocando o Norte aleatoriamente em direcções diferentes, o que torna a comparação de mapas uma tarefa assaz difícil. O pesadelo final a esse nível é Tóquio, onde a grande maioria das ruas nem nome tem. A certa altura tivemos que abordar uma filosofia diferente: sair na estação de metro mais perto da atracção que queríamos visitar, começar a andar numa direcção que julgamos poder ser a correcta, e ver aonde essa nos leva. Se encontrarmos o lugar, fixe – senão, caramba, estamos à mesma a passear por TÓQUIO, e isso já chega.
Preconceito destruído: o Japão é um lugar estranho
Deus sabe que seria mais divertido falar de experiências alucinantes em cenário de vídeo-jogos ou de epifanias espirituais em templos anciões. Mas a verdade prosaica é que, apesar do que nos podem dizer o “Lost In Translation”, o “Babel” e décadas e décadas de exoticização precedente, ir ao Japão não causa um choque cultural muito maior do que ir, digamos, aos Estados Unidos da América. As maiores diferenças encontram-se nas coisas pequenas: as fichas de electricidade, o papel higiénico (muito mais fino que o nosso), o lado em que os carros andam na rua. Depois de alguns dias a habituar-se a esses detalhes, ao comer-se com pauzinhos e a toda a gente ser asiática (sei que é óbvio mas mesmo assim o cérebro demora a entranhar) torna-se perfeitamente natural o dia-a-dia em terras nipónicas, diferente do nosso é claro, e com as suas pequenas absurdices e excentricidades (qual é o país que não as tem?), mas de forma alguma exótico o suficiente para parecer incompatível. A Tóquio maluca das massas e neons é, na verdade, uma parte minúscula da cidade; os cosplayers apenas uma pequena minoria na juventude de um dos países com população mais envelhecida do mundo; e sem querer de forma alguma disputar a sua existência, não encontrei nenhuma vending machine de cuecas.
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