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O Japão é um lugar estranho

O mais recente livro da Colecção de Viagens das edições tinta-da-china leva-nos até ao Japão contemporâneo. Carlos Vaz Marques é o coordenador desta colecção que alia a qualidade dos textos com o design dos livros.

Um livro é um prazer múltiplo
Carlos Vaz Marques

Um livro é um objecto. Tem uma capa e uma contracapa. Tem muitas ou poucas páginas. A qualidade do papel pode ser diversa. Pode ter vários tamanhos. O espaçamento entre linhas e o tamanho da letra pode variar. Quando dividido em capítulos, este poderão ser grandes ou pequenos. Poderão existir imagens que ilustrem a narrativa. “Japão é um lugar estranho” é um livro. Quando pela primeira vez peguei nesta obra, ainda na livraria, todas as características acima referidas levaram-me a querer folheá-lo. O objecto aproximou o leitor e deu-lhe a conhecer o seu conteúdo. Dias depois, uma amiga emprestou-me o seu exemplar. Após o ler, este leitor sente uma necessidade de partilha para que este ciclo possa continuar.

Dito isto, é importante afirmar que “Japão é um lugar estranho” é um excelente livro. Escrito pelo australiano Peter Carey, transporta-nos para o Japão contemporâneo relatando a viagem do próprio escritor com o seu filho Charlie ao país dos Samurais, do Sashimi, da Manga e do Anime. Para além da viagem e descoberta de um país recheado de mística e magia, muito difícil de entender para um mero ocidental, este livro mostra-nos que as relações pais/filhos encontram-se em mutação. O gosto e interesse de Charlie pela Manga e Anime motivaram a curiosidade do pai, bem como a viagem descrita no livro.

Aliando de uma forma quase perfeita a excelente qualidade literária com um design apelativo (capa dura rosa-choque, papel de qualidade e diversos pormenores deliciosos, como por exemplo a fita que serve de marcador), “Japão é um lugar estranho” é o mais recente título da Colecção de Viagens das Edições tinta-da-china. Esta colecção conta com a coordenação de Carlos Vaz Marques, com quem tivemos a oportunidade de trocar algumas impressões.

RDB – A manga e o anime servem de exemplo de uma cultura que o Ocidente ainda não conseguiu entender. Não será esta dificuldade de compreensão que atrai os ocidentais e que transforma o oriente num local mágico?

Carlos Vaz Marques – Mágico é, provavelmente, tudo aquilo para que não temos explicação e que exerce um fascínio que nem sempre é inteiramente compreensível. Lendo “O Japão é um Lugar Estranho” percebe-se que é este um dos temas que interessou o autor e que torna fascinante o livro de Peter Carey.

Este foi o segundo livro da colecção que traduziste. Alguma razão em especial? O Japão e o Oriente são temas que te interessam de uma forma particular?

Antes deste já tinha traduzido “Paris”, de Julien Green. Em ambos os casos a razão foi a mesma: foram livros de que gostei muito e quis reler mais de perto, usando para isso a lupa que é a tradução.

És uma pessoa viajada? Já concretizaste a tua viagem de sonho?

Viajei bastante mas ainda não o suficiente. A viagem de sonho é sempre a próxima. Espero poder voltar a percorrer uma parte dos Estados Unidos da América ainda este ano.

“O Japão é um lugar estranho” relata também uma relação pai/filho contemporânea, isto é, os gostos e interesses dos filhos são transmitidos aos pais. Achas que estamos a viver uma época de mudança também ao nível destas relações?

Creio que sim. Não tenho os instrumentos da sociologia nem disponho de estudos para poder fazer afirmações definitivas nesta matéria, mas tenho a percepção de que a disponibilidade dos pais para com os interesses dos filhos é capaz de ser hoje maior do que em gerações anteriores. Além disso, com a massificação da internet e da Web 2.0 – que os filhos já dominam, em muitos casos, melhor do que os pais – é frequente serem os pais a terem de aprender com os filhos.

Todos os outros títulos desta colecção são diferentes deste último livro. Podes descrever-nos, de forma resumida, os outros três livros desta colecção?

Esta colecção de literatura de viagens tem como objectivo que o único aspecto comum entre os seus diversos títulos seja a qualidade. Já editámos “Morte na Pérsia” de Annemarie Schwarzenbach, “Uma ideia da Índia” de Alberto Moravia e “Paris” de Julien Green.

Annemarie Schwarzenbach é uma autora suíça, cujo centenário do nascimento se comemorou no ano passado, e que teve necessidade de fugir à claustrofobia da Europa, no período da ascensão do nazismo, em viagens que relatou de um modo muito pessoal e muito intenso, emocionalmente.

Alberto Moravia é um dos grandes escritores do século XX e “Uma Ideia da Índia” é um misto de relato e de reflexão sobre um país que ele considera o “reverso” da Europa. O facto de o livro ir já para a quarta edição mostra como os leitores que o descobrem têm vindo a fazer um bom trabalho de “relações públicas”.

Julien Green é um escritor de língua francesa, filho de pais americanos, que nunca quis naturalizar-se francês e que viveu quase toda a vida em Paris. O livro que escreveu, também já em segunda edição, é uma pequena pérola de sensibilidade, que nos prova que ser viajante é um estado de espírito e que se pode viajar perto de casa com a mesma intensidade com que se viaja pelos antípodas. Além disso, Paris é uma daquelas cidades que todos julgamos conhecer, melhor ou pior, e que Green nos demonstra que não conhecemos ainda suficientemente.

Porque aceitaste este desafio de coordenar esta colecção?

Duas das coisas de que mais gosto na vida são ler e viajar. A literatura de viagens parece-me a combinação perfeita dessas duas paixões.

Qual tem sido o teu critério na escolha dos autores e dos títulos?

O critério principal é o da qualidade. Nesta colecção só cabem livros óptimos. Depois, é claro, os lugares de que falam os livros devem ir variando porque não faria sentido, com um mundo tão vasto à nossa disposição, viajarmos sempre para os mesmos destinos.

Qual vai ser o próximo livro a publicar?

O próximo título da colecção é um livro magistra, “Veneza”, de Jan Morris. Já muitos o disseram antes de mim: é uma obra-prima. O facto de esta ser, além disso, a primeira edição portuguesa de uma escritora britânica que Paul Theroux considera “a travelling genius” e “uma das maiores escritoras descritivas da língua inglesa” deixa-me cheio de orgulho. Aspecto interessante, apenas como curiosidade, Jan Morris escreveu este livro como oficial do 9º Regimento de lanceiros do exército britânico, ainda sob o nome de James Morris. Depois disso foi operada para se tornar a mulher que sempre sentiu ser, mesmo num corpo de homem.

Uma das características desta colecção é o próprio livro como objecto. Achas importante que exista um maior cuidado no design, no papel e nos pormenores de um livro? De quem partiu a ideia de colocar nesta colecção estas características?

Um livro é um prazer múltiplo. Quando tudo corre bem, e creio, pelas reacções unânimes, que tem sido manifestamente o caso desta colecção, começa por ser um prazer visual, torna-se um prazer táctil e culmina num prazer intelectual. Todo o trabalho da tinta-da-china demonstra esse cuidado que é, antes de mais, uma forma de respeito pelo leitor. Responsáveis por isso são o notável bom gosto da editora Bárbara Bulhosa e o talento gráfico da designer Vera Tavares.

No final do mês de Abril abriu a Ler Devagar no Espaço LX Factory em Alcântara. Acreditas que existe ainda espaço para projectos de grande dimensão no panorama literário, tendo em consideração o “falhanço” da Byblos?

Creio que há espaço para projectos pequenos, médios e grandes desde que com qualidade e sem promessas que se venham a revelar impossíveis de cumprir. Nesta matéria só posso formular desejos, o que nunca é suficiente. Desejo que a Ler Devagar, em Alcântara, obtenha o sucesso que a Byblos, infelizmente, não foi capaz de construir nas Amoreiras.



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