Junko Mizuno & Cinderalla

Conheçam a obra de uma das mais importantes e criativas artistas da BD japonesa.

Cinquenta anos após o nascimento da cultura pop em todo o seu esplendor, é possível teorizar uma premissa – esta década é a primeira, desde a santificação de Jimmy Dean, que declaradamente não se propõe a enveredar por futurismos.

“Retro” é a palavra-chave para compreender esta primeira metade dos “Tens” (tão bem apelidados pelo Douglas Coupland). Isto porque, à força de conflitos armados, e do cansaço causado pelos passageiros hypes, surgiu a necessidade de retorno a uma época em que um rol de valores morais constantes predominava. O tempo em que se usava chapéu e baton encarnado para ir dactilografar-para-fora, e se lia contos de fadas à prole.

Nessa era nasceu a b.d., a única forma de arte que, interdisciplinar e indisciplinadamente, uniu a marginalidade das Belas-Artes à marginalidade da Literatura. E, porque os japoneses se viciaram em adorar as criações do Ocidente para depois as subverterem da forma mais eficaz possível, foi criada a Manga.

Quase elevada a desporto nacional, este tipo de ilustração que, afinal, é tão mais do que isso, nunca foi exportado a nível massivo. Os seus consumidores não-nipónicos constituem pequenos nichos, sem grande expressão nos mercados de venda europeus e americanos. Assim, a Manga cresceu embebida num imaginário recheado de flores-de-lótus metalizadas, lolitas pornográficas, lendas-samurais, e robóticos peluches. Siderou-se consigo mesma e estagnou.

Até 2000, início de um novo milénio, e início da subversão daquilo que há décadas o fora. Tudo porque umas femininas mãos, imbuídas da revolução artística pelo regresso à simplicidade do passado (bem como de um Mac!), se tornaram no porta-estandarte de uma nova geração de mangakas. E estas são as mãos de Junko Mizuno.

“Pelo poder de Marte, vou castigar-te!”. Quem não se lembra da animé mais genial, porque kitsch e amorosamente inquietante? Pois é, o “Sailor Moon”. Foi a partir desta série que Junko mudou de um estilo realista para o seu traço característico que a começa a tornar num ídolo. Conjugando a clássica doçura dos contos de encantar com o horror, gera imagens e narrativas surpreendentemente deliciosas, que, embora sejam recomendadas a maiores de 18, podem ser lidas por toda a gente.

“Cinderela”, “A Pequena Sereia”, e “Hansel e Gretel” foram os mitos dignos de serem distorcidos em formato de 5 5/8”x 8 1/8”.

CINDERALLA – A donzela de copa D

Mudando apenas de “e” para “a”, e acrescentando um “l”, o título “Cinderalla” pouco deixa a antever quanto à sua temática. Lançado em 2000, foi o primeiro best-seller desta japonesa, e o seu trampolim para a fama no mundo dos comics. É um livro que trata de bondade.

A personagem principal, Cinderalla, reencarnação alucinada de Cinderela, é o paradigma dos modelos morais judaico-cristãos. De silhueta curvilínea, parece saída de um filme de Russ Meyers, onde a pornografia espreita de soslaio por detrás da porta. Com longos e volumosos cabelos compridos e coloridos, lembra as Navegantes da Lua, embora se note que, ao contrário destas, já passou completamente a adolescência. A Cinderalla não é uma lolita, e tem ar de quem nunca o foi, apesar da sua inexperiência vivencial.

Tal como a Gata Borralheira, esta heroína passa pela experiência da morte que tudo transforma. O seu pai, com quem trabalhava no restaurante de família, engasga-se com um passarinho ao jantar, e é esta autêntica boneca de copa D de soutien que, envergando apenas lingerie preta com corações, o vai enterrar ao cemitério, acompanhada por adjuvantes ratinhos.

Chegada a fase da aceitação da morte (que se dá rapidamente, face aos problemas concretos do quotidiano numa metrópole), esta Brigitte Bardot trash do novo milénio confronta-se com a premente gerência do restaurante, muito procurado devido a um molho de barbecue cuja receita unicamente o dono, agora morto, sabia.

É este o despoletar de todos os acontecimentos, e será à luz da “Divina Comédia” de Dante que se deve compreender a narrativa. Desesperada, Cinderalla decide ir numa peregrinação iniciática aos infernos para encontrar o seu pai e descobrir o segredo do seu molho barbecue. Todavia, é o contrário que sucede, numa noite em que ela, estafada do trabalho de gerente, empregada de mesa, e entertainer (como se da Dita Von Teese se tratasse), vai rezar para junto da campa do pai. Ele aparece-lhe, morto-vivo, e não vem sozinho, já que, surpresa-das-surpresas!, se casou com outra zombie, que, por seu lado, tem duas filhas. A alegria jorra, e, neste caso, a forma verbal é literal – os pompons e corações que enfeitam Cinderalla confundem-se com o grotesco da viva mortandade.

Assim se complica a vida desta menina-mulher – as tão bem acolhidas meias-irmãs e madrasta são extremamente comilonas, por causa de uma doença que tiveram há muitos anos, quando ainda eram vivas, e fazem com que as suas tarefas no restaurante se dificultem ainda mais. Para além disso, uma meia-irmã precisa de soutiens novos porque veste copa DDD, e no reino dos zombies não há fabricantes de tamanhos tão grandes – mais um trabalho para a protagonista. É, portanto, de escravatura alimentar e emocional que falo.

Como boa cristã, Cinderalla não se nega a nenhuma requisição, cumprindo tudo com um sorriso de boa-vontade no rosto. Mas há algo que lhe falta. Até certo dia, em que, no cemitério, à espera que a sua nova família saia das campas para o jantar, começa a divagar a nível espacial e se perde, ao mesmo tempo que o seu boustier explode, com um delicioso “POP!”. Feito isto aparece-lhe um jovem de aparência anémica que a ajuda a voltar ao ponto de partida.

Se a paixão faltava nesta história, os corações tão rouge como as faces provam que essa falha foi naquele momento colmatada. Cinderalla apaixona-se, e passa a viver todos os minutos a sonhar com o belo desconhecido supostamente anémico. Provando novamente altruísmo, acolhe em sua casa uma criança fada expulsa do seu reino por não ter poderes. E que gostava de beber saké até se embriagar.

Foi a ajudar a nova amiga a curar a bebedeira em frente à televisão que, de forma não deliberada, Cinderalla sintonizou uma estação zombie e viu um anúncio a um concerto de uma popstar do mundo dos mortos vivos – aquele desconhecido em quem pensa dias inteiros. Ao invés de ser anémico, como se supunha, ele é zombie. E isso só pode ser bem pior.

Chama-se Prince, salientando-se daqui uma dupla analogia e imagem antitética bastante bem construída em torno tanto do mito do Príncipe da “Cinderela”, como da estrela da música pop americana dos anos oitenta e noventa, o Prince.  Completamente extasiada com a possibilidade de reencontrar então aquele por quem se apaixonara, Cinderalla mostra-se mais bela e doce do que nunca. Isto até todas as suas ilusões se desfazerem, quando se apercebe de que só os mortos-vivos podem entrar no espectáculo. Trágica esta nova ditadura dos zombies, como fora trágica a ditadura da aristocracia no conto de fadas original.

E, porque se se espalhar amor, se receberá amor, o carinho que a esta heroína dá à pequena fada marginal, é-lhe retribuído, quando, pelo mágico efeito da bebedeira de saké, esta última começa a conseguir fazer magia. Igualmente à imagem de “Cinderela”, são concedidos desejos à protagonista da história de Manga mais refrescante em duas décadas, sendo o mais importante e unicamente relevante o facto de se poder transformar em zombie por uma noite, a do concerto do Prince.

Como seria de esperar, este apaixona-se por ela, e o sexo que acontece é muito ao estilo de Barry White (se ele fosse um ilustrador). Mas o feitiço não dura sempre, e de madrugada aquela que morreu por um dia, foge do leito em que jura ter ser sido o mais feliz possível, só que, em vez de deixar um sapato, deixa ficar um olho para trás. Não é preciso muito para imaginar que o amante abandonado ao amanhecer vai querer experimentar o olho em todas as zombies zarolhas (incluíndo nas meias-irmãs comilonas), com a esperança de encontrar a Cinderalla. Assim é. E, como em todos os contos de fadas, ainda que modernos, o fim revela-se sempre feliz para os que praticam o Bem.

No meio de muitas peripécias, o Prince encontra Cinderalla, e, tal como no dia em que se vislumbraram pela primeira vez num lugar ermo do cemitério, com outro legítimo “POP!” se ilustra o negro olho a voltar ao seu lugar de origem, o rosto da empregada de mesa mais glossy da Literatura, e ela a morrer. Para poder viver o amor em todo o seu esplendor, em jeito de sentimento-maior-do-que-a-vida.

MAIS MIZUNO

Dizer que esta revisão psicadélica de um conto de fadas tradicional tem toques de humor negro é ser eufemista. Pois “Cinderalla” conjuga na perfeição o gore com sensualidade e doçura. Aquele que era considerado o mais brilhante objecto pop do Japão em 2000 teve sucessores.

Inspirada n’”A Pequena Sereia”, “Princess Mermaid” é uma fábula passada no oceano profundo, tendo como protagonistas três irmãs, sereias, terrificamente semelhantes a pin-ups.  Chamam-se Tura, Julie, e Ai, podendo-se saldar daqui uma mistura entre a cultura pop ocidental e nipónica. Apesar do seu look doce e muito feminino, têm como hobbie  atrair pescadores e marinheiros para o seu luxuoso palácio debaixo de água.

Ao invés do que acontece nas tradicionais lendas náuticas, estes seres não têm o propósito do amor, mas antes o da comida e da vingança. Defensoras dos direitos dos animais e da Natureza, juraram fazer justiça às atrocidades que os humanos atentam contra a sua mãe, o mar. E por isso matam. Contudo, tudo muda quando Julie se apaixona por um dos marinheiros – Suekichi. Seria impossível que este não se rendesse a uma Betty Page marinha, e é a partir daí que os dois amantes se encontram numa batalha feudal entre espécies, onde não faltam dragões carregados de luxúria, e desenhos oníricas de plâncton. Tudo em 143 páginas de cores violentas, vibrantes e sexy.

Precisamente com o mesmo número de páginas se apresenta outra feliz deturpação – “Hansel & Gretel”. Se não se lembram do Hansel como um wiz-kid que deita abaixo tudo o que o rodeia , porque tem uma lata de atum presa à boca, para além de uma voz estranhamente forte, e se não conhecem uma Gretel de cabelo rosa-choque, fato à marinheira, e a derrubar arruaceiros com a sua espada de bambu, esta é a altura indicada para lerem Junko Mizuno.

Porque os desenhos que redefinem futuro, contemporaneidade, e retro, a nível cultural, fazem com que as Powerpuff Girls pareçam umas meninas.



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